terça-feira, 17 de dezembro de 2024

A pequena Angola

 

«Angola Janga» é uma obra a vários títulos excepcional. A história do livro está naturalmente romanceada, até porque, para além da tradição oral negra, de Pernambuco, só se conhecem os registos «oficiais», dos esclavagistas portugueses e dos militares. Mas é, mesmo que romanceada, muito bonita e dura.

Mas para além da história, «Angola Janga é uma obra de excepção também do ponto de vista gráfico, do desenho e da técnica. Um preto/ branco cru, sem cinzentos, enxuto, sem lenimentos, africanista se pretende, deliberadamente naïf, por vezes, e simultaneamente carregado de dramatismo. E belo.

D'Salete procura fugir ao discurso linear sem decair no abstraccionismo, mas a linguagem é claramente gráfica, de bd, nos desenhos, que não são retratos ou caricaturas, mas personagens em movimento, com vida, nas perspectivas, nos enquadramentos, nas chamadas, nas imagens cortadas, também na intromissão ou ausência dos balões, no dramatismo de que falei, e no final, o silêncio que sufoca, e o negro da noite.

A edição é da Polvo, de 2018, e tinha-me escapado completamente. A Polvo editou em português de Portugal (o original é, naturalmente, brasileiro) este magnífico «Angola Janga», que inclui introdução e posfácio, glossário e contextualização histórica e geográfica. 

Parabéns à Polvo e ao autor, Marcelo d'Salete, que desconhecia de todo. O Brasil não pára de me surpreender. Também na banda desenhada.

«Angola Janga, pequena Angola ou, como dizem os livros de história, Palmares. Por mais de cem anos foi como que um reino africano dentro da América do Sul. E, apesar do nome, não era tão pequeno como isso: Macaco, a capital, tinha uma população equivalente à das maiores cidades brasileiras da época.

Formada no fim do século XVI, em Pernambuco, a partir dos mocambos criados por fugitivos da escravidão, Angola Janga cresceu, organizou-se e resistiu aos ataques dos militares holandeses e das forças coloniais portuguesas.

Tornou-se o grande alvo do ódio dos colonizadores e um símbolo de liberdade para os escravizados. O seu maior líder, Zumbi, transformou-se numa lenda e inspirou a criação do Dia da Consciência Negra.

Angola Janga e Marcelo D’Salete arrebataram no Brasil, em 2018, os prestigiados troféus HQMix, nas categorias Edição Especial Nacional, Desenhista Nacional e Roteirista Nacional e ainda o prémio Grampo.

O livro foi igualmente nomeado para o mais importante prémio literário brasileiro, o Jabuti, na categoria Histórias em Quadrinhos (a atribuir em Novembro de 2018). Com 432 páginas é, provavelmente, o maior romance em banda desenhada já publicado por um autor brasileiro.»

Angola Janga, Marcelo d'Salete, Polvo 2018.

 



Robert Crumb desenha os Blues

 



Eu sou um incondicional do Robert Crumb que, para quem não sabe, é o «papa» da banda desenhada underground. Os menos conhecedores talvez já tenham, ainda assim, ouvido falar do gato mais mal educado e pervertido da história, Fritz the Cat, uma criação de Crumb dos anos 60 do século passado.

Para além de ser uma lenda da BD, Crumb é conhecido por ser um audiófilo e um melómano e colecionador compulsivo, e é também um músico amador. Curiosamente, se na banda desenhada (na América diz-se comics ou comix) ele foi um revolucionário e um irreverente, os seus gostos musicais são bastante tradicionalistas, embora em boa verdade eu não tenha nada a apontar-lhe: gosta do velho Jazz, e falo do Jazz de New Orleans, dos blues, de folk e rock (do tempo em que os músicos de rock sabiam tocar, e nada de modernices). Os que estiveram na minha exposição (Hot Club 2021 e depois Festival de Jazz do Barreiro e Funchal Jazz 2022) talvez se recordem de um livrinho de retratos/ caricaturas de lendas da música de Robert Crumb de que eu falei e que dava pelo nome de «R. Crumb´s Heroes of Blues, Jazz & Country».

Este «Blues», tradução brasileira para «R. Crumb Draws the Blues» é uma reunião de histórias e desenhos de desde os anos 70 até ao início do milénio, publicados por todo o lado, sob o tema dos Blues. Tem um pouco de tudo, entre pequenas biografias de bluesmen a histórias rocambolescas, de caricaturas a desvarios de «rabos e mamas» típicos de Crumb, de alucinações psicadélicas a anedotas, cartazes e ilustrações diversas, e ainda aparições de Janis Joplin, B.B. King ou Jelly Roll Morton, «Keep on Truckin’» e «Mr. Natural»; acompanhando, também do ponto de vista estilístico, a evolução, e experiências gráficas do mestre.                 

O Crumb é inqualificável e, mesmo se faltará (essa) unidade estilística à obra, «Blues» é exemplar da sua paixão pela música, da sua irreverência e originalidade e, enfim, da sua arte maior.

Comprei não sei já onde, esta edição brasileira, que tem aquele problemazito da língua, mas que está muito bem cuidada graficamente, capa dura, papel mate, preto e branco e cores, respeitando o original. Vale o peso em ouro.

Blues, Robert Crumb, Veneta (São Paulo), 2021

Pannonica

 




A história da Baronesa Kathleen Annie Pannonica de Koenigswarter (nascida Rothschild) e a sua relação com o Jazz é conhecida. Foi em casa dela que Charlie Parker morreu e foi a casa dela que a mulher de Thelonious Monk foi levar o pianista quando a sua vida em família se tornou insuportável, e o número de músicos que por sua casa passaram é infindo. A história e as histórias da Baronesa, a protectora dos músicos de Jazz, tornaram-na lendária. 

Assolado pela demência e pelas drogas, Monk encontrou em casa da Baronesa o carinho que a vida lhe negava, e ele dedicou-lhe duas composições que se tornaram standards do Jazz: «Pannonica» e «Ba-Lue Bolivar Ba-Lues-Are» (este último refere-se a um dos hotéis nova-iorquinos onde Nica viveu por largos anos, o Bolivar); mas outros músicos eternizaram o nome da Baronesa da forma que sabiam: Horace Silver escreveu «Nica’s Dream», Gigi Gryce «Nica’s Tempo», Freddie Redd «Nica Steps Out», Sonny Clark escreveu «Nica» e Kenny Drew’s escreveu «Blues for Nica».

A relação de Pannonica com o Jazz é pois conhecida, mas muitos ignorarão que essa paixão remonta à sua juventude, nos anos 30, e ela se cruzou com Django Reinhardt e outros músicos ainda antes da guerra, em França, ou que se recusou relegar-se ao «papel das mulheres» como a sociedade e o marido lhe exigiam, e participou na II Guerra Mundial activamente, no norte de África, contra o nazismo.   

A vida da Baronesa do Jazz é contada na «novela gráfica» de editada em 2020 e é uma magnífica homenagem a uma mulher singular.  

A edição que eu tenho é a terceira, de 2022, na língua francesa original, 160 pgs, e foi-me oferecida pelo meu amigo João Pedro (um grande abraço, João Pedro!). Pode ser que tenham a sorte de vos calhar um exemplar no sapatinho. Candidatem-se.

La Baronne du Jazz, Stéphane Tamaillon e Priscilla Horviller, Steinkis, 2020

domingo, 1 de dezembro de 2024

Miles Davis e Juliette Gréco

Miles en Paris, tradução espanhola do original francês Miles et Juliette, conta a história da passagem de Miles Davis por Paris naquela primavera de 1949, e o seu encontro com Juliette Gréco. 

É uma história romanceada, a partir do pouco que se sabe, e que é apenas que naquela semana Miles e Julliette se envolveram, e que Miles Davis regressou a New York.

A história possui todos os ingredientes para estimular a imaginação, e o pouco que se sabe contribui (por ser pouco): Juliette era uma mulher jovem e lindíssima, cantava e escrevia poesia e possuía o charme e a rebeldia das parisienses, e Miles era um jovem irreverente negro norte-americano, uma celebridade já, no mundo Jazz, apesar da idade. A atracção dos opostos terá tido a força da fatalidade e eles apaixonaram-se perdidamente, assim se conta. 

Nessa semana Miles Davis conheceu Boris Vian, Jean Paul Sartre, Pablo Picasso, Albert Camus, Simone de Beauvoir, Tristan Tzara, you name it, apaixonou-se e viveu dias de verdadeira liberdade. Em Paris não havia restaurantes nem hotéis só para brancos e toda a gente o reconhecia como um grande músico e uma personalidade, podia passear-se com uma mulher branca sem ser incomodado e podia até ir para a cama com ela! 

Conta-se que Miles percorreu Paris acompanhado de Boris Vian ou a bela francesa e viveu dias que terão sido inesquecíveis. O que é que o levou a regressar a New York depois de num primeiro momento ter pensado em ficar em Paris (como ficou Kenny Clarke, por exemplo), ou até a impedir a apaixonada Juliette Gréco de o acompanhar, eles nunca contaram.  

Podemos especular que Miles tinha ambições (que se goraram no regresso a New York: o «Bird of the Cool» esperaria uma década para ver a luz do dia), ou tinha mulher e filhos, mesmo se ele não fosse propriamente um modelo de marido ou pai, ou porque ele não tinha nada para oferecer à jovem rebelde e, pelo contrário, ele tinha a noção de que ela não seria bem aceite.  Miles e Juliette reencontraram-se duas ou três vezes ao longo da vida, mas a sua historia ficou sempre entre eles.

A história que Salva Rubio e Sagar contam é que eles viveram um amor tórrido, e que desesperadamente se separaram, mas nunca se esqueceram, e essa é a história bonita e triste que interessa. 

Salva Rubio, o argumentista, é também historiador, e fez questão de cruzar a informação disponível, entre a biografia de Miles de Ian Carr, os documentários de Ken Burns e os escritos de Boris Vian. A história é construída a partir daí, mesmo se ele assume que se trata de uma história ficcionada: afinal Miles e Juliette nunca contaram o que é que aconteceu. As lendas vivem destas coisas.

A graphic novel é completada com um dossier de mais de uma dezena de páginas que ajuda a situar a história do ponto de visa musical e histórico, e uma playlist de 64 temas, um por cada página. Desenho a fugir ao descritivo e ao bonito, com cores fortes e sombrias, e algumas singularidades de nota.  

Como eu começo por dizer, Miles en Paris é a versão espanhola de Miles et Juliete (que é a que eu devia ter comprado). Norma Editoral

Argumento: Salva Rubio
Desenho: Sagar




50 anos d'A Ideia

 A Ideia faz 50 anos e a efeméride é celebrada na Biblioteca Nacional com uma exposição que está patente ao público até 14 de Dezembro. 

Esse dia último dia, sábado 14 de Dezembro (15.30) é também o dia do lançamento do último número de A Ideia, que terá a apresentação do director, António Cândido Franco.


« A Ideia, então «órgão anarquista específico de expressão portuguesa», foi fundada por João Freire em Paris em abril de 1974. Era, de certa maneira, uma herança do espírito de “Maio de 68” que se queria fazer alargar, também em língua portuguesa. Assim, esteve no cerne da realização, em julho de 1974, de um grande comício anarquista internacional, que encheu a ‘Voz do Operário‘ de Lisboa. A partir de 1975 a revista prosseguiu a sua existência já em Portugal, procurando compatibilizar a herança dos antigos anarquistas sindicalistas do tempo da República e da Ditadura que animavam os jornais A Batalha ou Voz Anarquista com as atitudes contestatárias da juventude escolarizada de então.

Na década de 80, considerando estabilizada a democracia em Portugal, A Ideia evoluiu no essencial das suas mensagens, estimulando a legitimação dos então chamados “novos movimentos sociais” (sobretudo o feminismo, a ecologia e o pacifismo) ao mesmo  tempo que, contando com novos colaboradores como Miguel Serras Pereira e Vasco Rosa, deixou o anterior carácter gráfico artesanal-militante e assumiu-se efetivamente como uma «revista de cultura e pensamento anarquista», alargando muito o leque de autores que nela participavam, incluindo na área pictórica.

Depois de uma década muita discreta, a revista ressurge com o século XXI como “revista libertária”, de novo pela mão de João Freire; e foram elementos seus que entre 2010 e 2012 desenvolveram o projeto ‘Movimento social crítico e alternativo’ (MOSCA) financiado pela FCT. Em 2013 assumiu a sua direção o já antigo colaborador António Cândido Franco que lhe imprimiu uma dinâmica muito nova, como «revista de cultura libertária» e com o seu conteúdo a corresponder a tal programa editorial, com especial destaque para os temas e autores surrealistas, tanto na escrita como nas imagens, mas sem minimamente renegar a sua trajetória anterior.»


Exposição até 14 de Dezembro de 2024 

Lançamento do n.º 104/105/106, 14 de Dezembro, 15.30 

Biblioteca Nacional


sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Histórias de mulheres

 



Andou perdido no meu escritório durante anos, este e mais uns não sei quantos dos  livros proibidos pela Censura no Estado Novo publicados pelo Público (outros foram o notável O Malhadinhas do Aquilino Ribeiro que eu nunca tinha lido, que vergonha!, e as Novas Cartas Portuguesas das três Marias, datado), mas este Ida e volta duma caixa de cigarros de Maria Archer merece-me referência.

O livro são quatro histórias, das quais a da caixa de cigarros é apenas a primeira, e a edição é antecedida do fac simile da primeira página do processo do censor, citando um anterior parecer:

«… nas duas primeiras novelas, de caracter acentuadamente erótico, a autora compraz-se na volupia do promenor sensual, que parece ser o único objectivo» - claramente o censor estaria deveras excitado ao redigir o parecer.

São quatro histórias desiguais, escritas nos anos 30 do século passado, eu diria que com algumas subtilezas estilísticas entre elas, que merecem a leitura. São histórias de mulheres, com uma excepção à perspectiva feminina, mais próxima do neo-realismo, essa uma história ternurenta e muito bonita de pescadores e das suas mulheres e do ambiente típico de aldeia piscatória.

Mas outras são histórias citadinas, de mulheres, de mulheres livres, no que eu diria que consiste a maior ofensa. Mulheres que confessam a sexualidade, que horror!, e que o escrevem!, que têm uma palavra a dizer sobre as relações!, e isso era insuportável para o neurónio solitário do censor. Mulheres solitárias, pela sua independência, por vezes, mesmo que não possuam a consciência da sua liberdade e por vezes a encarem como uma fatalidade, histórias de mulheres que olham o mundo pelos seus olhos.

Tive dificuldade em encontrar o erotismo subtil de Maria Archer, mesmo para os padrões da altura, mas o que se torna evidente é que o escandaloso era, não o erotismo em si, mas a perspectiva feminina do erotismo que Archer contava. E a liberdade. 

Enfim, a curiosidade fez-me querer saber alguma coisa desta escritora e jornalista que a ditadura perseguiu e relegou para o esquecimento. 

Ida e volta duma caixa de cigarros são quatro excelentes histórias que vale a pena descobrir.  

Histórias:

Ida e volta duma caixa de cigarros
Cai no mar a gota de água
Entre duas viagens
Uma mulher como outras


Ida e volta duma caixa de cigarros, Maria Archer, edição fac simile, Público, 2021 (1938)


Balões e volumes


O post sobre o Desculpa, Formosa Márcia já andava por aí perdido no meu portátil há um ano, à espera de qualquer coisa de que não me recordo o quê, e só me lembrei dele quando li o Folia de Reis que comprei no Amadora BD deste ano.  Bom, já está.

Agora o Folia de Reis. O livro anda meio desaparecido na bibliografia de Quintanilha, mas merece referência. Do que eu percebo, é de 2019, anterior ao Márcia, e dir-se-ia um livro de «transição», do ponto de vista estilístico. 

Eu referi a capacidade de nos surpreender de Quintanilha, de mudar de estilo a cada livro e a cada história, e este livro surpreendeu-me, de novo. 

Ele não tem, do ponto de vista da história, a dimensão, quase graphic novel, do Márcia, e ele regressa até à forma que lhe conhecíamos de histórias curtas, retratos crus da realidade do Brasil da favela, que começam e acabam ali.

Folia de Reis, a história, não tem pois a dimensão épica de Desculpa, Formosa Márcia, mas dois aspectos me merecem a referência: alguns elementos no desenho, em especial o «volume» que ele oferece às figuras, e os balões como elementos discursivos.

Nunca é um desenho bonito, elas são histórias dramáticas e simples de pessoas simples que o desenho quer transmitir, e o desenho é rude, não no artifício, mas na deselegância, para utilizar um eufemismo. Mas os personagens não cabem nos quadrinhos, ou os quadrinhos os cortam, e os balões dos diálogos sobrepõem-se às figuras com frequência, entrando quadros adentro. Mas aqui, outra novidade, as figuras, carregadas do castanho da pele e do cinzento sombrio do drama, têm volume, e isso raramente tinha sido feito. Elas têm uma tridimensionalidade que me lembrou a forma única do Tanino Liberatore (Ranxerox), e que ele manuseia de forma singular (violenta em Liberatore, rude em Quintanilha).

Mas há ainda outro aspecto de que já falei, e que me merece a observação, que são os diálogos, ou mais propriamente os balões, que fazem também parte da narrativa, atropelando-se por vezes, impondo-se por vezes por cima do desenho, crescendo ou sumindo ao sabor da história. Balões pontudos, premeditadamente feios e deselegantes, uma vez mais, construindo-se eles mesmos como elementos da narrativa.

Obra singular da BD brasileira, singular em Quintanilha também, Folia de Reis não tem a beleza da história de Escuta, Formosa Márcia, e diria que lhe noto alguma insegurança estilística, mas do ponto de vista do desenho e da construção narrativa, ela é um uma obra única.



 

A ternura em Quintanilha



Uma das coisas surpreendentes em Marcello Quintanilha é a sua capacidade de nos surpreender em cada novo livro.

Tendo-nos surpreendido nos primeiros livros por um estilo herdado do underground dos anos 70, negro e violento, quase ilegível por vezes, ele mudou a forma em cada livro e em «Escuta, formosa Márcia» ele volta a surpreender, numa forma colorida sem contorno, de cores pastel, numa história também ela surpreendente de bonita e sensível, mesmo se os personagens são habitantes da favela e vivem num quotidiano assolado pela violência e vulgaridade do Rio.

Diferente dos primeiros livros também, quase sem diálogos, em «Escuta, formosa Márcia» os diálogos são necessários, «intrometem-se» e fazem parte da narrativa. O livro conta a história vulgar de Márcia, uma enfermeira mãe solteira em conflito com a filha, a «insubordinada Jaqueline», envolvida no submundo do crime organizado das drogas do Rio de Janeiro.

É um drama que Quintanilha nos conta, numa forma crua e descontida, através de um calão por vezes incompreensível para um português, que se adoça no amor de Márcia por Aluísio, o padrasto de Jaqueline; um amor altruísta e redentor. Maravilhoso.

Uma belíssima edição da Polvo. Cinco estrelas.

 


sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

2023 - 2024

O balanço de 2023 ainda está por fazer, mas este foi o ano em que o Hot Club fechou (e não se sabe quando reabrirá), o ano em que José Duarte morreu, mas também Philippe Carles e Avelino Tavares, o grande Wayne Shorter, Carla Bley, Ahmad Jamal e Tony Bennet, entre outros, e acabamos de saber que nos deixou também o baterista Tony Oxley.

Mas as notícias no Jazz são irrelevantes quando olhamos as capas dos jornais ou ligamos a televisão: a acrescentar às ditaduras, muitas vezes alimentadas pelos interesses económicos do ocidente civilizado, à fome e à miséria de milhares de milhões e à riqueza pornográfica de outros poucos provocadas pelo liberalismo à solta, e às guerras que se perpetuam, na Ucrânia ou noutros lados do mundo, e enfim a destruição do planeta pela lógica do lucro, onde o ambiente só é importante se for rentável; o Outubro teve um ataque terrorista em Israel e, na sequência, o massacre indiscriminado de civis, homens mulheres e crianças, na Palestina, pelas mãos do governo fascista de Israel. Com a nossa complacência. 

Não quero alongar-me: o terrorismo não tem justificação e não tem a minha. Mas o terrorismo do Estado de Israel começou há muitos anos, e é sistemático, e é Israel que fomenta o terrorismo, e este é só mais um episódio do longo processo de extermínio deliberado do povo palestino. Nada justifica o genocídio, nada justifica o apartheid, nada justifica o massacre de inocentes. Israel tem as mãos sujas de sangue e o Ocidente também; a Europa e os Estados Unidos em primeiro lugar, pelo alheamento, quando não pelo apoio. Os palestinianos não mereciam o genocídio, os judeus não mereciam estes crimes que os perseguirão para sempre, a civilização não precisava de nada disto. 

Alguém falou em barbárie? - pois ela está aí, na Palestina. A esta hora que escrevo, mais umas centenas ou milhares de crianças e homens e mulheres inocentes estarão a ser bombardeados, a morrer pelas balas, pela fome ou pelas doenças que a guerra provocou: é a maldade humana para além do imaginável! E o silêncio do nosso governo, dos governos da UE e da UE, e dos EUA e de todo o mundo, é ensurdecedor. 

Que o massacre de inocentes termine, são os meus urgentes desejos para o 2024. Mesmo se não creia que a guerra vá parar.

E perdoem-me o desabafo. Que tenham um bom ano, melhor que o 2023. Com muito Jazz. E que a música possa unir os povos. Ou como diria John Lennon: All we are saying is give peace a chance

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Presentes de Natal

Este ano tenho sugestões de prendas de natal literárias. E sem delongas, aqui vão elas. 

Mas é Bonito, Geoff Dyer

A minha primeira recomendação é, como propus em JazzLogical, o livro de Geoff Dyer, Mas é Bonito, que já foi aqui objecto de um post antigo, de 2014.
O livro, editado pela Quetzal, pode ter de ser encomendado em virtude da edição ter quase dez anos. Mas ele está disponível na editora, é belíssimo e é um excelente presente.

Relógio de Cuco/ A Caça, Virgílio Martinho

A Companhia da Ilhas tem vindo a editar toda a obra de Virgílio Martinho. Depois de Festa Pública/ Orlando em Tríptico e Aventuras/ Rainhas Cláudias ao Domingo em 2012, e de O Grande Cidadão em 2022, eis que renasce em todo o seu esplendor o Relógio de Cuco, aqui acompanhado de A Caça
Eu descobri o Virgílio Martinho com 18 anos, e se algo tenho a dizer é que pouco escritores conheço com este dom de escrita como o Virgílio. Uma escrita elegante, total, do ponto de vista vocabular ou gramatical, erudita e prosaica, poética, dramática e humorada, escorreita, ritmada, que apetece devorar. Surrealista às vezes e neo-realista culto, ou pelo contrário, Virgílio merece, precisa, ser redescoberto.
As duas histórias são bem diferentes: mais poética e intimista O Relógio de Cuco (por ele foi acusado de neo-realista); divertida e surpreendente A Caça. Acreditem: já não se escreve assim. O livro tem um prefácio de Vítor Silva Tavares, editor da & etc e outro monstro das letras, num texto delicioso publicado em 1995.
 Embora a edição seja recente pode ser mais difícil encontra-la. Nada como pedir à Companhia das Ilhas. 


Santa-Bárbara Capista de Zeca, Abel Soares da Rosa

A minha quarta sugestão é um curioso livro sobre as capas dos discos de José Afonso, profusamente ilustrado, e com as histórias em torno das capas de Santa-Bábara, o capista do Zeca. E assim se chama – Santa-Bárbara Capista de Zeca - a belíssima recolha de Abel Soares da Rosa, com edição da Lusitanian. 




Andanças do Demónio, Jorge de Sena

Andanças do Demónio, recolha de histórias entre os anos 40 e 60 do século passado, é a estreia de Jorge de Sena no domínio da ficção. Histórias fantásticas, demoníacas ou extraordinariamente comezinhas, o livro revela um Jorge de Sena menos conhecido, mas também a sua pena luxuriante, aqui ao serviço da imaginação: «O demónio destas andanças em forma de conto não está em mim, está no mundo (e, com funda pena o digo, não viaja para fora de Portugal, como tanto conviria).» Edição Guerra e Paz.


 
Música negra, Leroi Jones (Amiri Baraka)

 Música negra, de Leroi Jones (Amiri Baraka) é uma recolha de textos publicados nos anos 60, dispersos por revistas da especialidade, tardiamente chegado ao nosso convívio. É um livro datado, mas que ajuda a compreender o fenómeno free-jazz e a influência que ele teve nos nossos divulgadores desse período. Radical nas propostas, a edição contempla um texto mais recente em que o autor admite o excesso dos textos antigos, mesmo reafirmando a sua razão de ser. Prefácio de Kalaf. Edição Orfeu Negro. 





Crónicas de Lisboa, Ferreira Fernandes e Nuno Saraiva

Crónicas de Lisboa é uma banda desenhada sobre Lisboa, nascida a partir de uma conversa com Catarina Carvalho, directora do jornal Mensagem de Lisboa. Com argumento delirante de Ferreira Fernandes e o desenho desbragado de Nuno Saraiva, Lisboa e os lisboetas que a fazem contam as suas histórias ou os autores lhas roubam, e por elas passam a Júlia Florista, o Carlos do Carmo, a Madame Brouillard, a Caparica, o Santo António, como a Catarina Carvalho anuncia logo no prefácio, mas ali entram o Benfica, o clube e o bairro, o Rei Leão Peyroteo, o 25 de Abril, os fascistas e os comunistas, o Rossio e o D. Pedro, o Imperador do Brasil e Rei de Portugal, a Brasileira e o Bartolomeu de Gusmão, o Almirante Reis e o Marquês de Pombal, Josephine Baker e a Dona Maria II, o rock, o fado e os olissipógrafos. Um desvario com edição da Asa.



Histórias de Jazz

E as minhas propostas completam-se enfim, com toda a lata, com as minhas Histórias de Jazz, de que não vale a pena falar mais, até porque delas falei aqui mesmo na semana passada.
Edição da Guerra e Paz.





E tenham um bom Natal, dingalingaling!



domingo, 3 de dezembro de 2023

Histórias de Jazz



Histórias de Jazz são catorze histórias que o jazz inspirou. São histórias intimistas, de amores e desamores desesperados, por vezes escandalosos, de sexo, traição, sangue, suor e lágrimas, amizade, humor, fantástico e poesia. Catorze histórias que evocam músicos, entre Miles Davis, o esquecido Frank Morgan e o irreverente e genial músico de rock Frank Zappa, ou canções que o jazz eternizou, como Jitterbug Walz ou For All We Know.
O livro conta ainda com uma magnífica capa com desenho do ilustrador e desenhador Nuno Saraiva e um excelente grafismo da editora (e está muito bonito). E fui eu que escrevi.

O livro foi editado pela prestigiada Guerra e Paz, e já está nas livrarias, mas pode ser adquirido directamente à editora.


Tintin 77 anos

 

O Tintin, a revista dos jovens dos 7 aos 77 anos faz, faria, 77 anos, e a Le Lombard publicou uma
volumosa edição comemorativa. 400 páginas de evocação e aventura, onde os jovens da minha idade encontrarão nostalgia, mas também algum desencanto. Muitos dos desenhadores já desapareceram, mas também a juventude é irrepetível, mas também muitas das histórias não poderiam ser escritas (e desenhadas) hoje – e enfim percebe-se porque é que a revista terminou. Muito do mundo selvagem que se imaginava – as utopias - desapareceu, por motivos políticos (e na altura viviam-se os restos dos colonialismos), ou porque foram assolados pelo turismo que chegou a todo o lado, ou porque hoje compreendemos que não podemos andar a matar indiscriminadamente animais selvagens; aliás queremos protegê-los; ou porque compreendemos que os índios da Amazónia ou de África têm direito aos seus territórios e nós não somos os inocentes aventureiros que gostávamo-nos de nos pintar. Enfim, nada é simples neste mundo em que vivemos, mas o mundo mudou e hoje sabemos.

Mas esta edição pretende apenas celebrar a nossa juventude e a nossa inocência, e ela está cheia de depoimentos e histórias curiosas desse tempo e de banda desenhada também; de histórias recriadas como foi possível.  

Uma edição para colecionadores nostálgicos.