O post sobre o Desculpa, Formosa Márcia já andava por aí perdido no meu portátil há um ano, à espera de qualquer coisa de que não me recordo o quê, e só me lembrei dele quando li o Folia de Reis que comprei no Amadora BD deste ano. Bom, já está.
Agora o Folia de Reis. O livro anda meio desaparecido na bibliografia de Quintanilha, mas merece referência. Do que eu percebo, é de 2019, anterior ao Márcia, e dir-se-ia um livro de «transição», do ponto de vista estilístico.
Eu referi a capacidade de nos surpreender de Quintanilha, de mudar de estilo a cada livro e a cada história, e este livro surpreendeu-me, de novo.
Ele não tem, do ponto de vista da história, a dimensão, quase graphic novel, do Márcia, e ele regressa até à forma que lhe conhecíamos de histórias curtas, retratos crus da realidade do Brasil da favela, que começam e acabam ali.
Folia de Reis, a história, não tem pois a dimensão épica de Desculpa, Formosa Márcia, mas dois aspectos me merecem a referência: alguns elementos no desenho, em especial o «volume» que ele oferece às figuras, e os balões como elementos discursivos.
Nunca é um desenho bonito, elas são histórias dramáticas e simples de pessoas simples que o desenho quer transmitir, e o desenho é rude, não no artifício, mas na deselegância, para utilizar um eufemismo. Mas os personagens não cabem nos quadrinhos, ou os quadrinhos os cortam, e os balões dos diálogos sobrepõem-se às figuras com frequência, entrando quadros adentro. Mas aqui, outra novidade, as figuras, carregadas do castanho da pele e do cinzento sombrio do drama, têm volume, e isso raramente tinha sido feito. Elas têm uma tridimensionalidade que me lembrou a forma única do Tanino Liberatore (Ranxerox), e que ele manuseia de forma singular (violenta em Liberatore, rude em Quintanilha).
Mas há ainda outro aspecto de que já falei, e que me merece a observação, que são os diálogos, ou mais propriamente os balões, que fazem também parte da narrativa, atropelando-se por vezes, impondo-se por vezes por cima do desenho, crescendo ou sumindo ao sabor da história. Balões pontudos, premeditadamente feios e deselegantes, uma vez mais, construindo-se eles mesmos como elementos da narrativa.
Obra singular da BD brasileira, singular em Quintanilha também, Folia de Reis não tem a beleza da história de Escuta, Formosa Márcia, e diria que lhe noto alguma insegurança estilística, mas do ponto de vista do desenho e da construção narrativa, ela é um uma obra única.
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