quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Uma aventura com o meu filho (3) - Gravuras rupestres do Côa




A visita às gravuras é, naturalmente, obrigatória, até porque elas são o leitmotiv do museu. A visita através do museu deve ser reservada com antecedência, mas existem alguns guias particulares acreditados, que podem conduzir os visitantes aos três núcleos autorizados do Parque Arqueológico: a Canada do Inferno, a Ribeira dos Piscos e a Penascosa. Visitámos a Canada do Inferno e a Penascosa, sendo que a visita a este último núcleo foi realizada de noite.
A visita ao núcleo da Canada do Inferno foi feita bilingue - os outros dois visitantes eram suíços franceses que também falavam inglês. Pudemos observar as gravuras de (creio que) cinco pedras de xisto, situadas perto do leito do Rio Côa ao longo de quinhentos metros, após um percurso realizado em jeep, onde estavam localizadas algumas dezenas de gravuras realizadas com técnicas diferentes – picotado e abrasão -, por diferentes autores, em tempos diferentes, tendo como motivos basicamente quatro animais: cabras, cavalos, auroques e veados. Datadas de até há 25000 anos, as gravuras são impressionantes de vida e mistério. 
A interessante visita de duas horas foi conduzida pelo informado técnico Marcos, que ajuntou informação sobre a vida natural e a história da ocupação humana do parque.
A visita a Foz Côa haveria de ser completada com uma visita nocturna às gravuras que ofuscaria a visita da manhã. Um contacto de última hora com uma outra técnica – Bárbara Carvalho –, guia e arqueóloga, levou-nos à Penascosa, um vale situado a 6 Km de Castelo Melhor, por um caminho apenas acessível de jeep e, como a Canada do Inferno, fechado ao público não autorizado.
A Penascosa é um vale fechado, com um horizonte que se situa bem acima dos nossos olhos, obstruindo qualquer poluição luminosa ou sonora. Tivemos a sorte de realizar a visita numa noite de quarto crescente, em que a Lua se pôs muito cedo, deixando ver um céu estrelado fantástico; como disse, sem qualquer poluição luminosa, o que é raro de observar para um citadino. O silêncio apenas era cortado pelo coaxar ruidoso das rãs que deixavam adivinhar o Côa a apenas alguns metros. A visita foi sempre acompanhada ainda por milhares (milhões?) de mosquitos, incomodativos mas não agressivos, morcegos e ainda aranhas (inofensivas mas aos milhares), que se revelavam à luz da lanterna da Bárbara.    
E se a observação das gravuras da Canada do Inferno nos tinha impressionado, as gravuras da Penascosa - os traços evidenciados pelas sombras produzidas pela luz artificial, que permitiam de forma mais eficiente diferençar os traços -, transportaram-nos para um passado longínquo e misterioso: o princípio da arte, rituais anímicos, a beleza primordial, o enigmático insolúvel da vida dos nossos antepassados.       
É óbvio que o cenário nocturno – o que não se podia ver -, o firmamento estrelado, o silêncio insistente das rãs, a natureza agreste, em muito contribuiu para o deslumbramento que experimentámos. A isto acresceu a informação apaixonada da nossa guia, interrogando, sugerindo, revelando, e eu diria que – também graças a ela - a visita se tornou numa outra experiência verdadeiramente reveladora.
 E creio que em ambos os casos a visita deve ser efectuada em pequenos grupos e com informação e condução avisada, sob o risco de se perder o essencial. 
 

Uma aventura com o meu filho (2) - Museu do Côa




O Museu do Côa vale a visita. Para mim, apenas a visita ao museu – o edifício, a obra arquitectónica - já teria valido os 400 Km (mais o regresso).

A chegada ao museu é memorável. Verdadeira peça de land art - enquadrado – disfarçado - na paisagem, junto à foz do Coa, por cima do Douro, ele apenas se revela já muito perto. O museu é uma peça única de arquitectura – diz o leigo que eu sou, impressionado que fiquei desde o primeiro momento, desde o acesso principal ao museu, uma rampa que se estreita em funil, desembocando na sala de recepção, por onde se pode seguir para o museu ou para o restaurante no piso inferior.  

Com projecto arquitectónico de Tiago Pimentel e Camilo Rebelo, o museu é inteiramente dedicado às gravuras, com muito material informativo sobre a ocupação humana da região, reproduções das gravuras, ilustração histórica e algumas pequenas pedras de xisto gravadas, retiradas das escavações. Mas se a visita ao museu não substitui a visita às gravuras, o edifício é ele mesmo impressionante. Anguloso, provocador, a solução da pedra exterior, aliás cimento moldado em pedras de xisto, reconhecendo as irregularidades do xisto, é genial.

A vista do restaurante para as escarpas áridas do Douro, onde a quietude da paisagem apenas cortada pelo ruído das cigarras (no verão, obviamente) envolve os visitantes (e mastigantes), é inesquecível. Não almoçámos no restaurante do Museu, mas pareceu-nos uma hipótese a considerar em futura visita, pela comida, nos disseram, mas pela vista, com certeza. A título informativo: o preço da refeição com facilidade ultrapassa os 25€.

Perdido no meio do nada, o museu é uma peça artística única. 
Deixo os pormenores para os especialistas, com a minha insistência de que apenas a visita ao museu vale a deslocação. 





Uma aventura com o meu filho (1)




Finalmente (!) visitei as gravuras rupestres do Côa. A ideia surgiu de um convite do meu filho para umas mini-férias culturais, a partir do seu o interesse em visitar alguns museus do norte. 

Umas férias com o meu filho são uma aventura. Não é por ser meu filho, ou também é, mas com um jovem entusiasmado, curioso e informado, qualquer passeio é outra coisa: há sempre umas ruínas a visitar, umas pedras que lhe sugerem coisa, um edifício escondido, um castro que se revela, uma casa que uma albufeira submergiu, um mosteiro inacessível, uma localidade perdida que é preciso encontrar.

Quase seis dias, mil e seiscentos quilómetros, três museus, as gravuras de Foz Coa, várias localidades, ruínas, casas e mosteiros, com alojamentos em albergues de juventude ou em parques de campismo, estas férias foram verdadeiramente memoráveis. Não vos quero aborrecer com os detalhes, mas gostava de comunicar aos meus amigos e seguidores deste blog o meu entusiasmo por alguns dos objectos visitados – basicamente sobre dois dos museus visitados e as gravuras do Côa -, a que ajuntarei alguns curtos comentários sobre algumas das localidades visitadas.


Itinerário resumido:

1º dia: Lisboa – Foz Coa

2.º dia: Foz Coa (museu e gravuras), Castelo Velho de Freixo de Numão

3.º dia: Foz Coa - Castelo Melhor, Praia Fluvial do Sabor, São João da Pesqueira, Capela da Sra do Rosário, Barragem da Valeira, Foz do Tua, Sabrosa, Vila Real

4.º dia: São Martinho de Anta (Museu Miguel Torga), Chaves (Museu Nadir Afonso), Allariz

5.º dia: Allariz – Aquis Querquennis (acampamento romano), Pitões das Júnias (mosteiro), Lousã

6.º dia: Góis – Lisboa

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Terra de sonhos




1.ª história.
Um homem e uma mulher tinham um cão. O cão estava velho e doente. Eles procuraram de todas as formas oferecer um resto de vida digna ao cão. O cão nunca mais morria. Morreu.

2.ª história.
Ofereceram uma gata persa ao mesmo casal da história anterior. A gata estava grávida e teve três ou quatro gatinhos (a história baralha-se algures). A gata é burra e não trata dos filhos. Os donos têm que intervir e finalmente ela adopta-os. Felicidade.

3.ª história.
Enquanto os gatinhos crescem encontram uma vizinha que tinha um cão velho como o que tinha sido deles. O cão foge e depois é encontrado. Depois morre. Conseguem dar um dos gatinhos, mas resolvem ficar com os outros dois mais a mãe.

4.ª história.
A sobrinha da mulher, com doze anos, apareceu lá em casa, porque a mãe, viúva, resolveu casar de novo. Durante dois meses a miúda fica lá em casa e o tio joga basebol com ela. No fim ela regressa a casa, a mãe casa-se e o padrasto joga basebol com ela.  

5.ª história.
Dois amigos subiram ao Evereste. Tomaram um ácido qualquer (ou foi do ar rarefeito) e viram um tigre a 6000 metros de altura. Não conseguiram chegar ao topo e um deles morreu. O sobrevivente regressou, casou-se e teve um filho. A pedrada do alpinismo não lhe tinha passado e ele gastou o dinheiro todo da família para regressar aos Himalaias. Conseguiu chegar ao topo da montanha com um sherpa, voltou a ver o tigre e despediu-se do amigo.
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Nem todas as histórias têm de ser grande histórias e algumas das melhores histórias da literatura (ou do cinema, ou da banda desenhada) são pequenas histórias de felicidade ou de tristeza do dia a dia, e o que o Jira Taniguchi escolheu contar cinco histórias banais. Mas quantas vezes pequenas histórias do quotidiano se tornaram grandes histórias pela arte do narrador? – Não é o caso. O estilo manga – aqueles rostos e aqueles olhos esbugalhados sempre iguais -, do autor, excessivamente realista e simples, não introduz qualquer dramatismo, ou sequer interesse, à história.  


Terra de Sonhos, Jiro Taniguchi, Novela Gráfica II, Público/ Levoir 2016 




sábado, 13 de agosto de 2016

Batman Noir






Também (como Parque Chas, de que falo em anterior post) com desenhos de Eduardo Risso, mas com argumento de Brian Azzarello, Batman Noir explora a faceta mais negra de Batman, não escapando ao mais maniqueísta do universo das histórias dos super-heróis, onde os bons são sempre (enfim, quase sempre) bonitos e os maus são sempre (enfim, quase sempre) feios, e onde os muito maus são também muito feios. 
Desenho a preto e branco sem matizes, com um jogo de sombras soberbo conseguido com contrastes muito fortes, Batman Noir acusa a influência de Frank Miller, de que não consegue desembaraçar-se, mas também aqui e ali dos compatriotas José Muñoz (Alack Sinner) e Alberto Breccia – a cara do vilão no centro da página 82 dir-se-ia mesmo uma homenagem explícita a Breccia.
Sem novidade, mas bem conseguido.






Btaman Noir, Eduardo Risso e Brian Azzarello, Levoir, 2016


Parque Chas





Publicado originalmente na revista Fierro em 1987, Parque Chas de Eduardo Risso (desenhos) e Ricardo Barreiro (argumento), relata uma série de histórias fantásticas passadas no Parque Chas de Buenos Aires. Com um desenho muito interessante, de sombreados de carvão, a história perde-se num intrincado fantástico pouco conseguido e um humor excessivamente simplista.

Parque Chas é a novela gráfica número 7 da série II do Público.
Boa impressão.


Parque Chas, Ricardo Barreiro e Eduardo Risso, Novela Gráfica II, Público/ Levoir, 2016



A Garagem Hermética





Sexto volume da colecção de novelas gráficas do Público, A Garagem Hermética de Moebius é um dos grandes momentos da banda desenhada dos anos 70.
Surrealista, diríamos, a Garagem Hermética constituiu um choque para os fãs do desenhador Gir – Jean Giraud – que há mais de uma década assinava o desenho hiper-realista de Lieutenant Blueberry - Tenente Blueberry em português. Publicado a partir de 1976 e até 1979 na revista Métal Hurlant, o alter-ego de Gir revelava-se uma surpresa, no desenho, muito mais estilizado, e na narrativa e na história, irregular e caótica. A história foi aliás improvisada, ao sabor do tempo, com personagens que aparecem e desaparecem e que eventualmente são recuperados, com situações e lugares retirados da ficção científica ou de um qualquer imaginário fantástico e raramente coerente, numa sequência com tanto de confuso quanto de delirante. 
A colaboração com a Métal Hurlant já tinha anteriormente dado frutos com a publicação de algumas curtas histórias de Arzach, e viria a ter outros grandes episódios com a colaboração do argumentista Jodorowsky na série de fc-fantástico L’Incal (O Incal, também publicado em Portugal em várias histórias).
A preto e branco no original (ao contrário das histórias de Blueberry que eram luxuosamente coloridas), A Garagem Hermética foi posteriormente colorida e teve uma edição portuguesa (com alguns problemas de impressão na cor) da Meribéria nos anos 90. Respeitando o original a preto e branco, esta edição, sem desmerecer, acusa também um problema de impressão, algo esbatida, que atribuo ao facto de ter sido feita a partir de fotografia e não das pranchas originais. Este problema persiste também na edição da Valentina, embora nessoutra se não note tanto, mas já seja algo mais grave nalgumas edições da anterior série das novelas gráficas do Público, e em especial no fantástico Mort Cinder de Breccia.


A Garagem Hermética, Moebius, Novelas Gráficas II, Público/ Levoir, 2016

Valentina





Já vai no nono volume a série II das novelas gráficas do Público: o Valentina de Guido Crepax. Para trás ficaram Alan Moore/ David Floyd – V de Vingança -, Miguelanxo Prado – Presas Fáceis, Moebius – A garagem hermética -, Joe Kubert – Fax de Sarajevo -, entre outros.
Capas cartonadas, versões integrais (ou reunião de várias histórias, quase sempre ultrapassando a centena de páginas) e originais, a edição merece referência.
Valentina é uma criação do desenhador italiano Guido Crepax (1933-2003). Nascida como personagem secundária numa história de policial fantástico, Neutron, publicada na revista Linus em 1965, mas apenas dois anos depois ela tornar-se-ia a heroína principal das histórias de Crepax, com mais de trinta histórias publicadas.
As histórias que são hoje publicadas remontam ao período de 1968 até 1975, começando por apresentar a heroína em criança, mas progressivamente, e logo pouco depois, o desenho ganharia uma carga erótica que se manteve até ao fim. Onírico, fantástico, erótico, o preto e branco (de raros sombreados) de Guido Crepax rompe decididamente com a narrativa cinematográfica da banda desenhada clássica, utilizando cada prancha como um todo, sem quadrados de tamanho ou posição regular, com cercaduras bem marcadas, mas aqui e ali desfazendo as linhas, combinando grandes planos com planos de conjunto, deslocando a visão para planos impossíveis, detalhando, com sequência nem sempre óbvia, parando o tempo ou precipitando a narrativa.
A figura de Valentina inspira-se na actriz do cinema mudo Louise Brooks (1906-1985), que Crepax transformaria num ícone da banda desenhada, despindo e vestindo, jogando com a anatomia esguia de forma agressiva.
As histórias de Valentina estão cheias de referências – fantasmas - de toda a ordem, mais ou menos explícitas, políticas, sociais, artísticas, literárias, cinematográficas, musicais (Guido Crepax era um apaixonado pelo Jazz), ou à própria banda desenhada.
São cento e setenta e seis páginas de banda desenhada, a grande banda desenhada, pela mão de um dos seus mais singulares e geniais autores.
Obrigatório.

Valentina, Guido Crepax, Novelas Gráficas II, Público/ Levoir, 2016