terça-feira, 17 de dezembro de 2024

A pequena Angola

 

«Angola Janga» é uma obra a vários títulos excepcional. A história do livro está naturalmente romanceada, até porque, para além da tradição oral negra, de Pernambuco, só se conhecem os registos «oficiais», dos esclavagistas portugueses e dos militares. Mas é, mesmo que romanceada, muito bonita e dura.

Mas para além da história, «Angola Janga é uma obra de excepção também do ponto de vista gráfico, do desenho e da técnica. Um preto/ branco cru, sem cinzentos, enxuto, sem lenimentos, africanista se pretende, deliberadamente naïf, por vezes, e simultaneamente carregado de dramatismo. E belo.

D'Salete procura fugir ao discurso linear sem decair no abstraccionismo, mas a linguagem é claramente gráfica, de bd, nos desenhos, que não são retratos ou caricaturas, mas personagens em movimento, com vida, nas perspectivas, nos enquadramentos, nas chamadas, nas imagens cortadas, também na intromissão ou ausência dos balões, no dramatismo de que falei, e no final, o silêncio que sufoca, e o negro da noite.

A edição é da Polvo, de 2018, e tinha-me escapado completamente. A Polvo editou em português de Portugal (o original é, naturalmente, brasileiro) este magnífico «Angola Janga», que inclui introdução e posfácio, glossário e contextualização histórica e geográfica. 

Parabéns à Polvo e ao autor, Marcelo d'Salete, que desconhecia de todo. O Brasil não pára de me surpreender. Também na banda desenhada.

«Angola Janga, pequena Angola ou, como dizem os livros de história, Palmares. Por mais de cem anos foi como que um reino africano dentro da América do Sul. E, apesar do nome, não era tão pequeno como isso: Macaco, a capital, tinha uma população equivalente à das maiores cidades brasileiras da época.

Formada no fim do século XVI, em Pernambuco, a partir dos mocambos criados por fugitivos da escravidão, Angola Janga cresceu, organizou-se e resistiu aos ataques dos militares holandeses e das forças coloniais portuguesas.

Tornou-se o grande alvo do ódio dos colonizadores e um símbolo de liberdade para os escravizados. O seu maior líder, Zumbi, transformou-se numa lenda e inspirou a criação do Dia da Consciência Negra.

Angola Janga e Marcelo D’Salete arrebataram no Brasil, em 2018, os prestigiados troféus HQMix, nas categorias Edição Especial Nacional, Desenhista Nacional e Roteirista Nacional e ainda o prémio Grampo.

O livro foi igualmente nomeado para o mais importante prémio literário brasileiro, o Jabuti, na categoria Histórias em Quadrinhos (a atribuir em Novembro de 2018). Com 432 páginas é, provavelmente, o maior romance em banda desenhada já publicado por um autor brasileiro.»

Angola Janga, Marcelo d'Salete, Polvo 2018.

 



Robert Crumb desenha os Blues

 



Eu sou um incondicional do Robert Crumb que, para quem não sabe, é o «papa» da banda desenhada underground. Os menos conhecedores talvez já tenham, ainda assim, ouvido falar do gato mais mal educado e pervertido da história, Fritz the Cat, uma criação de Crumb dos anos 60 do século passado.

Para além de ser uma lenda da BD, Crumb é conhecido por ser um audiófilo e um melómano e colecionador compulsivo, e é também um músico amador. Curiosamente, se na banda desenhada (na América diz-se comics ou comix) ele foi um revolucionário e um irreverente, os seus gostos musicais são bastante tradicionalistas, embora em boa verdade eu não tenha nada a apontar-lhe: gosta do velho Jazz, e falo do Jazz de New Orleans, dos blues, de folk e rock (do tempo em que os músicos de rock sabiam tocar, e nada de modernices). Os que estiveram na minha exposição (Hot Club 2021 e depois Festival de Jazz do Barreiro e Funchal Jazz 2022) talvez se recordem de um livrinho de retratos/ caricaturas de lendas da música de Robert Crumb de que eu falei e que dava pelo nome de «R. Crumb´s Heroes of Blues, Jazz & Country».

Este «Blues», tradução brasileira para «R. Crumb Draws the Blues» é uma reunião de histórias e desenhos de desde os anos 70 até ao início do milénio, publicados por todo o lado, sob o tema dos Blues. Tem um pouco de tudo, entre pequenas biografias de bluesmen a histórias rocambolescas, de caricaturas a desvarios de «rabos e mamas» típicos de Crumb, de alucinações psicadélicas a anedotas, cartazes e ilustrações diversas, e ainda aparições de Janis Joplin, B.B. King ou Jelly Roll Morton, «Keep on Truckin’» e «Mr. Natural»; acompanhando, também do ponto de vista estilístico, a evolução, e experiências gráficas do mestre.                 

O Crumb é inqualificável e, mesmo se faltará (essa) unidade estilística à obra, «Blues» é exemplar da sua paixão pela música, da sua irreverência e originalidade e, enfim, da sua arte maior.

Comprei não sei já onde, esta edição brasileira, que tem aquele problemazito da língua, mas que está muito bem cuidada graficamente, capa dura, papel mate, preto e branco e cores, respeitando o original. Vale o peso em ouro.

Blues, Robert Crumb, Veneta (São Paulo), 2021

Pannonica

 




A história da Baronesa Kathleen Annie Pannonica de Koenigswarter (nascida Rothschild) e a sua relação com o Jazz é conhecida. Foi em casa dela que Charlie Parker morreu e foi a casa dela que a mulher de Thelonious Monk foi levar o pianista quando a sua vida em família se tornou insuportável, e o número de músicos que por sua casa passaram é infindo. A história e as histórias da Baronesa, a protectora dos músicos de Jazz, tornaram-na lendária. 

Assolado pela demência e pelas drogas, Monk encontrou em casa da Baronesa o carinho que a vida lhe negava, e ele dedicou-lhe duas composições que se tornaram standards do Jazz: «Pannonica» e «Ba-Lue Bolivar Ba-Lues-Are» (este último refere-se a um dos hotéis nova-iorquinos onde Nica viveu por largos anos, o Bolivar); mas outros músicos eternizaram o nome da Baronesa da forma que sabiam: Horace Silver escreveu «Nica’s Dream», Gigi Gryce «Nica’s Tempo», Freddie Redd «Nica Steps Out», Sonny Clark escreveu «Nica» e Kenny Drew’s escreveu «Blues for Nica».

A relação de Pannonica com o Jazz é pois conhecida, mas muitos ignorarão que essa paixão remonta à sua juventude, nos anos 30, e ela se cruzou com Django Reinhardt e outros músicos ainda antes da guerra, em França, ou que se recusou relegar-se ao «papel das mulheres» como a sociedade e o marido lhe exigiam, e participou na II Guerra Mundial activamente, no norte de África, contra o nazismo.   

A vida da Baronesa do Jazz é contada na «novela gráfica» de editada em 2020 e é uma magnífica homenagem a uma mulher singular.  

A edição que eu tenho é a terceira, de 2022, na língua francesa original, 160 pgs, e foi-me oferecida pelo meu amigo João Pedro (um grande abraço, João Pedro!). Pode ser que tenham a sorte de vos calhar um exemplar no sapatinho. Candidatem-se.

La Baronne du Jazz, Stéphane Tamaillon e Priscilla Horviller, Steinkis, 2020

domingo, 1 de dezembro de 2024

Miles Davis e Juliette Gréco

Miles en Paris, tradução espanhola do original francês Miles et Juliette, conta a história da passagem de Miles Davis por Paris naquela primavera de 1949, e o seu encontro com Juliette Gréco. 

É uma história romanceada, a partir do pouco que se sabe, e que é apenas que naquela semana Miles e Julliette se envolveram, e que Miles Davis regressou a New York.

A história possui todos os ingredientes para estimular a imaginação, e o pouco que se sabe contribui (por ser pouco): Juliette era uma mulher jovem e lindíssima, cantava e escrevia poesia e possuía o charme e a rebeldia das parisienses, e Miles era um jovem irreverente negro norte-americano, uma celebridade já, no mundo Jazz, apesar da idade. A atracção dos opostos terá tido a força da fatalidade e eles apaixonaram-se perdidamente, assim se conta. 

Nessa semana Miles Davis conheceu Boris Vian, Jean Paul Sartre, Pablo Picasso, Albert Camus, Simone de Beauvoir, Tristan Tzara, you name it, apaixonou-se e viveu dias de verdadeira liberdade. Em Paris não havia restaurantes nem hotéis só para brancos e toda a gente o reconhecia como um grande músico e uma personalidade, podia passear-se com uma mulher branca sem ser incomodado e podia até ir para a cama com ela! 

Conta-se que Miles percorreu Paris acompanhado de Boris Vian ou a bela francesa e viveu dias que terão sido inesquecíveis. O que é que o levou a regressar a New York depois de num primeiro momento ter pensado em ficar em Paris (como ficou Kenny Clarke, por exemplo), ou até a impedir a apaixonada Juliette Gréco de o acompanhar, eles nunca contaram.  

Podemos especular que Miles tinha ambições (que se goraram no regresso a New York: o «Bird of the Cool» esperaria uma década para ver a luz do dia), ou tinha mulher e filhos, mesmo se ele não fosse propriamente um modelo de marido ou pai, ou porque ele não tinha nada para oferecer à jovem rebelde e, pelo contrário, ele tinha a noção de que ela não seria bem aceite.  Miles e Juliette reencontraram-se duas ou três vezes ao longo da vida, mas a sua historia ficou sempre entre eles.

A história que Salva Rubio e Sagar contam é que eles viveram um amor tórrido, e que desesperadamente se separaram, mas nunca se esqueceram, e essa é a história bonita e triste que interessa. 

Salva Rubio, o argumentista, é também historiador, e fez questão de cruzar a informação disponível, entre a biografia de Miles de Ian Carr, os documentários de Ken Burns e os escritos de Boris Vian. A história é construída a partir daí, mesmo se ele assume que se trata de uma história ficcionada: afinal Miles e Juliette nunca contaram o que é que aconteceu. As lendas vivem destas coisas.

A graphic novel é completada com um dossier de mais de uma dezena de páginas que ajuda a situar a história do ponto de visa musical e histórico, e uma playlist de 64 temas, um por cada página. Desenho a fugir ao descritivo e ao bonito, com cores fortes e sombrias, e algumas singularidades de nota.  

Como eu começo por dizer, Miles en Paris é a versão espanhola de Miles et Juliete (que é a que eu devia ter comprado). Norma Editoral

Argumento: Salva Rubio
Desenho: Sagar




50 anos d'A Ideia

 A Ideia faz 50 anos e a efeméride é celebrada na Biblioteca Nacional com uma exposição que está patente ao público até 14 de Dezembro. 

Esse dia último dia, sábado 14 de Dezembro (15.30) é também o dia do lançamento do último número de A Ideia, que terá a apresentação do director, António Cândido Franco.


« A Ideia, então «órgão anarquista específico de expressão portuguesa», foi fundada por João Freire em Paris em abril de 1974. Era, de certa maneira, uma herança do espírito de “Maio de 68” que se queria fazer alargar, também em língua portuguesa. Assim, esteve no cerne da realização, em julho de 1974, de um grande comício anarquista internacional, que encheu a ‘Voz do Operário‘ de Lisboa. A partir de 1975 a revista prosseguiu a sua existência já em Portugal, procurando compatibilizar a herança dos antigos anarquistas sindicalistas do tempo da República e da Ditadura que animavam os jornais A Batalha ou Voz Anarquista com as atitudes contestatárias da juventude escolarizada de então.

Na década de 80, considerando estabilizada a democracia em Portugal, A Ideia evoluiu no essencial das suas mensagens, estimulando a legitimação dos então chamados “novos movimentos sociais” (sobretudo o feminismo, a ecologia e o pacifismo) ao mesmo  tempo que, contando com novos colaboradores como Miguel Serras Pereira e Vasco Rosa, deixou o anterior carácter gráfico artesanal-militante e assumiu-se efetivamente como uma «revista de cultura e pensamento anarquista», alargando muito o leque de autores que nela participavam, incluindo na área pictórica.

Depois de uma década muita discreta, a revista ressurge com o século XXI como “revista libertária”, de novo pela mão de João Freire; e foram elementos seus que entre 2010 e 2012 desenvolveram o projeto ‘Movimento social crítico e alternativo’ (MOSCA) financiado pela FCT. Em 2013 assumiu a sua direção o já antigo colaborador António Cândido Franco que lhe imprimiu uma dinâmica muito nova, como «revista de cultura libertária» e com o seu conteúdo a corresponder a tal programa editorial, com especial destaque para os temas e autores surrealistas, tanto na escrita como nas imagens, mas sem minimamente renegar a sua trajetória anterior.»


Exposição até 14 de Dezembro de 2024 

Lançamento do n.º 104/105/106, 14 de Dezembro, 15.30 

Biblioteca Nacional