Andou perdido no meu escritório durante anos, este e mais uns não sei quantos dos livros proibidos pela Censura no Estado Novo publicados pelo Público (outros foram o notável O Malhadinhas do Aquilino Ribeiro que eu nunca tinha lido, que vergonha!, e as Novas Cartas Portuguesas das três Marias, datado), mas este Ida e volta duma caixa de cigarros de Maria Archer merece-me referência.
O livro são quatro histórias, das quais a da caixa de cigarros é apenas a primeira, e a edição é antecedida do fac simile da primeira página do processo do censor, citando um anterior parecer:
«… nas duas primeiras novelas, de caracter acentuadamente
erótico, a autora compraz-se na volupia do promenor sensual, que parece ser o único
objectivo» - claramente o censor estaria deveras excitado ao redigir o parecer.
São quatro histórias desiguais, escritas nos anos 30 do
século passado, eu diria que com algumas subtilezas estilísticas entre elas,
que merecem a leitura. São histórias de mulheres, com uma excepção à
perspectiva feminina, mais próxima do neo-realismo, essa uma história ternurenta
e muito bonita de pescadores e das suas mulheres e do ambiente típico de aldeia
piscatória.
Mas outras são histórias citadinas, de mulheres, de mulheres
livres, no que eu diria que consiste a maior ofensa. Mulheres que confessam a
sexualidade, que horror!, e que o escrevem!, que têm uma palavra a dizer sobre
as relações!, e isso era insuportável para o neurónio solitário do censor. Mulheres
solitárias, pela sua independência, por vezes, mesmo que não possuam a
consciência da sua liberdade e por vezes a encarem como uma fatalidade, histórias
de mulheres que olham o mundo pelos seus olhos.
Tive dificuldade em encontrar o erotismo subtil de Maria Archer,
mesmo para os padrões da altura, mas o que se torna evidente é que o escandaloso
era, não o erotismo em si, mas a perspectiva feminina do erotismo que Archer contava. E a liberdade.
Enfim, a curiosidade fez-me querer saber alguma coisa desta escritora e jornalista que a ditadura perseguiu e relegou para o esquecimento.
Ida e volta duma caixa de cigarros são quatro excelentes histórias que vale a pena descobrir.
Histórias:
Ida e volta duma caixa de cigarros
Cai no mar a gota de água
Entre duas viagens
Uma mulher como outras
Ida e volta duma caixa de cigarros, Maria Archer, edição fac simile, Público, 2021 (1938)