sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Histórias de mulheres

 



Andou perdido no meu escritório durante anos, este e mais uns não sei quantos dos  livros proibidos pela Censura no Estado Novo publicados pelo Público (outros foram o notável O Malhadinhas do Aquilino Ribeiro que eu nunca tinha lido, que vergonha!, e as Novas Cartas Portuguesas das três Marias, datado), mas este Ida e volta duma caixa de cigarros de Maria Archer merece-me referência.

O livro são quatro histórias, das quais a da caixa de cigarros é apenas a primeira, e a edição é antecedida do fac simile da primeira página do processo do censor, citando um anterior parecer:

«… nas duas primeiras novelas, de caracter acentuadamente erótico, a autora compraz-se na volupia do promenor sensual, que parece ser o único objectivo» - claramente o censor estaria deveras excitado ao redigir o parecer.

São quatro histórias desiguais, escritas nos anos 30 do século passado, eu diria que com algumas subtilezas estilísticas entre elas, que merecem a leitura. São histórias de mulheres, com uma excepção à perspectiva feminina, mais próxima do neo-realismo, essa uma história ternurenta e muito bonita de pescadores e das suas mulheres e do ambiente típico de aldeia piscatória.

Mas outras são histórias citadinas, de mulheres, de mulheres livres, no que eu diria que consiste a maior ofensa. Mulheres que confessam a sexualidade, que horror!, e que o escrevem!, que têm uma palavra a dizer sobre as relações!, e isso era insuportável para o neurónio solitário do censor. Mulheres solitárias, pela sua independência, por vezes, mesmo que não possuam a consciência da sua liberdade e por vezes a encarem como uma fatalidade, histórias de mulheres que olham o mundo pelos seus olhos.

Tive dificuldade em encontrar o erotismo subtil de Maria Archer, mesmo para os padrões da altura, mas o que se torna evidente é que o escandaloso era, não o erotismo em si, mas a perspectiva feminina do erotismo que Archer contava. E a liberdade. 

Enfim, a curiosidade fez-me querer saber alguma coisa desta escritora e jornalista que a ditadura perseguiu e relegou para o esquecimento. 

Ida e volta duma caixa de cigarros são quatro excelentes histórias que vale a pena descobrir.  

Histórias:

Ida e volta duma caixa de cigarros
Cai no mar a gota de água
Entre duas viagens
Uma mulher como outras


Ida e volta duma caixa de cigarros, Maria Archer, edição fac simile, Público, 2021 (1938)


Balões e volumes


O post sobre o Desculpa, Formosa Márcia já andava por aí perdido no meu portátil há um ano, à espera de qualquer coisa de que não me recordo o quê, e só me lembrei dele quando li o Folia de Reis que comprei no Amadora BD deste ano.  Bom, já está.

Agora o Folia de Reis. O livro anda meio desaparecido na bibliografia de Quintanilha, mas merece referência. Do que eu percebo, é de 2019, anterior ao Márcia, e dir-se-ia um livro de «transição», do ponto de vista estilístico. 

Eu referi a capacidade de nos surpreender de Quintanilha, de mudar de estilo a cada livro e a cada história, e este livro surpreendeu-me, de novo. 

Ele não tem, do ponto de vista da história, a dimensão, quase graphic novel, do Márcia, e ele regressa até à forma que lhe conhecíamos de histórias curtas, retratos crus da realidade do Brasil da favela, que começam e acabam ali.

Folia de Reis, a história, não tem pois a dimensão épica de Desculpa, Formosa Márcia, mas dois aspectos me merecem a referência: alguns elementos no desenho, em especial o «volume» que ele oferece às figuras, e os balões como elementos discursivos.

Nunca é um desenho bonito, elas são histórias dramáticas e simples de pessoas simples que o desenho quer transmitir, e o desenho é rude, não no artifício, mas na deselegância, para utilizar um eufemismo. Mas os personagens não cabem nos quadrinhos, ou os quadrinhos os cortam, e os balões dos diálogos sobrepõem-se às figuras com frequência, entrando quadros adentro. Mas aqui, outra novidade, as figuras, carregadas do castanho da pele e do cinzento sombrio do drama, têm volume, e isso raramente tinha sido feito. Elas têm uma tridimensionalidade que me lembrou a forma única do Tanino Liberatore (Ranxerox), e que ele manuseia de forma singular (violenta em Liberatore, rude em Quintanilha).

Mas há ainda outro aspecto de que já falei, e que me merece a observação, que são os diálogos, ou mais propriamente os balões, que fazem também parte da narrativa, atropelando-se por vezes, impondo-se por vezes por cima do desenho, crescendo ou sumindo ao sabor da história. Balões pontudos, premeditadamente feios e deselegantes, uma vez mais, construindo-se eles mesmos como elementos da narrativa.

Obra singular da BD brasileira, singular em Quintanilha também, Folia de Reis não tem a beleza da história de Escuta, Formosa Márcia, e diria que lhe noto alguma insegurança estilística, mas do ponto de vista do desenho e da construção narrativa, ela é um uma obra única.



 

A ternura em Quintanilha



Uma das coisas surpreendentes em Marcello Quintanilha é a sua capacidade de nos surpreender em cada novo livro.

Tendo-nos surpreendido nos primeiros livros por um estilo herdado do underground dos anos 70, negro e violento, quase ilegível por vezes, ele mudou a forma em cada livro e em «Escuta, formosa Márcia» ele volta a surpreender, numa forma colorida sem contorno, de cores pastel, numa história também ela surpreendente de bonita e sensível, mesmo se os personagens são habitantes da favela e vivem num quotidiano assolado pela violência e vulgaridade do Rio.

Diferente dos primeiros livros também, quase sem diálogos, em «Escuta, formosa Márcia» os diálogos são necessários, «intrometem-se» e fazem parte da narrativa. O livro conta a história vulgar de Márcia, uma enfermeira mãe solteira em conflito com a filha, a «insubordinada Jaqueline», envolvida no submundo do crime organizado das drogas do Rio de Janeiro.

É um drama que Quintanilha nos conta, numa forma crua e descontida, através de um calão por vezes incompreensível para um português, que se adoça no amor de Márcia por Aluísio, o padrasto de Jaqueline; um amor altruísta e redentor. Maravilhoso.

Uma belíssima edição da Polvo. Cinco estrelas.