sábado, 13 de outubro de 2012

Batman - The Dark Knight Rises




O super-herói Batman pertence à DC Comics, rival da Marvel (Spiderman...) , e tem sido objecto de revisitações por parte da indústria cinematográfica (entre os quais dois episódios de Tim Burton), com resultados diversos.
A figura Batman remonta aos anos 40 e tem a particularidade de ser um super-herói que não possui super-poderes, tendo sido também, ao longo dos anos, um dos super-heróis mais bem servido em termos de desenhadores.
Órfão milionário, Bruce Wayne viu os pais serem assassinados em criança, tornando-se mais tarde o herói vingador da noite de Gotham City. O sucesso de Batman ultrapassou o do Superman , tornando-se uma figura de culto. As razões do sucesso de Batman terão sido, entre outros, provavelmente o facto de não possuir super-poderes, que são substituídos por toda a sorte de gadgets; mas a sua arma principal é o medo que a sua figura, inspirada nos morcegos, incute nos criminosos.
O medo, a sua relação com o bem e o mal, e a relação com a insanidade, acabaram por gerar alguns dos melhores argumentos das histórias de banda desenhada. Vários argumentistas procuraram explorar a ideia de que a figura do bem que Batman representa é apenas um dos lados da mesma moeda que tem como reverso o mal: a viver no fio da navalha, inspirando os sentimentos mais primários nos criminosos, Batman estaria muito próximo deles. O seu maior inimigo, o Joker, não seria mais que o reverso de Batman, e até o hospício onde está aprisionado, o Arkham Asylum, é claramente uma versão negra da mansão Wayne.
A transposição para o cinema do Batman tem sido muito irregular, e este último é o pior dos episódios. O argumento é um desfilar de estereótipos, e claramente o realizador pouco sabe da figura de Batman. Muita destruição, muitos maus e feios, história com saltos, muitos efeitos especiais, com frequência desadequados, desaproveitamento de algumas poucas boas ideias: uma chatice.
Uma estrela para a Cat Woman (Anne Hathaway) e mais meia para a bat-mota.
A evitar.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

The Amazing Spider-man


 
Confesso que não perco um Homem Aranha. Que querem? Cresci com Peter Parker e ele tornou-se de certa forma num alter-ego.    
Surgido em 1962, Spiderman é um dos primeiros super-heróis da Marvel (creio que os primeiros terão sido os Fantastic Four) , e é o grande responsável pelo sucesso da editora. The Amazing Spiderman rompia com os super-heróis invencíveis do estilo Superman, praticamente sem vida pessoal. Peter Parker era um jovem solitário, apaixonado, inteligente, com problemas financeiros; ao contrário do macambúzio e desinteressante Clark Kent. E se Superman tinha sido o super-herói que os americanos precisavam para enfrentar os nazis, os adolescentes dos anos 60 reviam-se agora num herói complexo, que ria e sofria e crescia com eles.
Spiderman inaugurava a era dos anti-super-heróis (os anti-heróis tinham sido «inventados» por Charles Schulz em 1950). O bem e o mal deixavam de ser desenhados a preto e branco e, com frequência, os argumentistas do Homem Aranha procuravam explicações sociológicas ou psicológicas para explicar o mal. Os vilões nem sempre eram maus, ou eram-no pelas circunstâncias, e os bons nem sempre haveriam de ser «cavaleiros andantes». Não ainda assim o Homem Aranha, que pagava os erros bem caro, e para quem as histórias acabavam invariavelmente mal, mesmo quando derrotava os vilões. Mas ele necessitava esconder a sua personalidade super, chegando a sugerir cobardia ou fraqueza, para defender os amigos ou a família. As coisas não lhe corriam bem com as namoradas, a tia, os colegas ou os amigos. De certa forma ele encarnava os anseios dos jovens em formação de personalidade, para quem ninguém era capaz de reconhecer as virtudes da sua alma que o corpo não podia transmitir. Quando em 1973, num comovente episódio, a namorada do jovem Peter Parker, Gwen Stacy, morre às mãos do Duende Verde, alguns jornais americanos noticiaram a sua morte na primeira página! Era simbolicamente o fim da inocência na banda desenhada, onde ninguém morre, mas o episódio em que a vitória contra o inimigo lhe custou a vida da namorada caracteriza bem a figura do super-anti-herói.
Enfim, o enorme sucesso do aranhiço na banda desenhada tem acompanhado também os filmes, que procuram respeitar o espírito da série, mesmo reescrevendo as histórias.
O último episódio regressa atrás na sequência que estava a ser seguida, recuperando um super-vilão, o Lagarto (surgido em 1963), mais uma vez um vilão «acidental».
História agradável, bem contada, efeitos especiais no seu melhor (mesmo se a versão 3D abusa do efeito view master), duas horas de entretenimento assegurado. O realizador procurou sempre insuflar a alma agitada no personagem, mas resiste a um happy end.

Just Kids, Patti Smith



Leitura de férias foi um presente de aniversário, Just Kids de Patti Smith.
Ao longo das 300 páginas de Just Kids passam Allen Ginsberg, Andy Warhol, Bob Dylan, Jimi Hendrix, Janis Joplin, e toda uma infinidade de personagens que foram a imagem da beat generation nos finais dos anos 70, ficando por vezes a sensação de que Patty Smith chegou sempre tarde: ela encontrou toda a gente quando eles já eram famosos e ela ainda não o era. Horses, o primeiro disco Patty Smith, foi editado em 1975, já num período de ascensão do punk, cinco anos depois da morte de Hendrix, Jim Morrison ou Joplin. A Factory tinha fechado em 1968…  
Just Kids tem como argumento as relações da cantora com o amigo de sempre, Robert Mapplethorpe (a quem é dedicado), até à sua morte, percorrendo um período que vai da infância à mudança para New York, até ao sucesso como cantora e artista.Torna-se por vezes um pouco cansativo pela minúcia descritiva, pecando também pela forma simpática como Patty Smith se descreve a si mesma (mas enfim, creio que outra coisa não seria de esperar numa autobiografia).
O livro é curioso, revelando uma artista culta, com uma grande atracção por poetas como Rimbaud e pela cultura europeia e uma enorme convicção no futuro.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O Cavalo de Turim, de Béla Tarr





O Cavalo de Turim é um filme perturbante.
Longo, muito longo, doentio, negro, dramático, obsessivo, mesmo desagradável, com apenas dois actores (mais seis em curtíssimas aparições), com uma história que se conta em poucos segundos. Mas rigoroso, de todo excessivo, minucioso, insuperável na representação, uma banda sonora, ou melhor um som, exemplar, absolutamente integrado na peça, uma fotografia - preto, branco, cinza - deslumbrante, e principalmente uma câmara que tanto rodopia em torno dos actores como os enfrenta em planos longuíssimos de longos minutos. Tanto se detém de frente numa figura como desliza em planos impossíveis, sem um tremor, sem uma hesitação, transpondo-nos para dentro do ecran.
A sensação que fica no final do filme é que nada podia ser feito de outra forma: não é possível destacar o som, os actores ou a luz; tudo se integra no objecto na sua perfeição.
O dramatismo e a densidade de O Cavalo de Turim evocam as ambiências doentias de Virgil Georgiu (romeno, como ele), mas é obsessivo e perturbador como Camus e Kafka. O Cavalo de Turim começa por incomodar na construção das figuras, na repetição obsessiva dos actos, na construção da inevitabilidade do quotidiano, os actores cercados pelo vento e pelo cinzento, acossando-os, até os desprover do mais elementar, da água, do fogo depois, e enfim da luz.
Sem explicar, os actores são cercados, somos cercados, numa teia insuportável que constrói o desfecho, absurdo, mas que é afinal o único possível, o derradeiro fim. 
O Cavalo de Turim é a antítese de Hollywood - obviamente construído para ser visto, mas sem a preocupação do público -, a antítese do cinema-espectáculo, doentio, loooongo: 146m, inquietante, mas afinal cinema no seu estado mais puro.

O Cavalo de Turim, Béla Tarr, 2011

quinta-feira, 22 de março de 2012

Luiz Pacheco

LUIZ PACHECO
1925 - 2008


O Pacheco finou-se. Que vos hei-de dizer? Ora talvez que ele foi uma das duas pessoas que me ensinou a escrever. A outra foi a Arlete, que era a minha professora do 5.º ano, que nunca conseguiu ensinar-me gramática mas que me disse que era preciso olhar para as palavras e a forma como elas estavam dispostas na frase. Se não aprendi, a culpa não é deles, que foram os melhores professores que se pode ter.

Recordo-me como um dia entrei naquela livraria da Rua do Ouro que já não existe (como é que se chamava?) para comprar o Exercícios de Estilo, e levei-o para o Paladium. Nesse dia, depois de ler o «Teodolito» e a «Comunidade», elegi o Luiz Pacheco como o maior escritor português do século XX, o que é ainda hoje bastante a minha convicção. Lamento apenas que tenha «perdido» tanto tempo a viver e tenha escrito tão pouco. Quantas vezes li e reli por puro gozo, mas também para tentar aprender como se podia usar a língua toda num texto?

Cruzei-me com ele meia dúzia de vezes, o que não era difícil para quem vivia em Lisboa. Recordo como impingia vitupérios por cinco escudos à porta da Trindade ou rosnava dedicatórias na Feira do Livro. A última vez que o vi – já há uns anos - estava com um ar desgraçado, mais pitosga que nunca, de sandálias e meias pretas. Ia no eléctrico para a Baixa e as velhas afastavam-se. Sentei-me ao lado dele que nem me viu. E eu, que lhe havia de dizer?


Depois do Exercícios de Estilo, comprei o Pacheco X Cesariny e o Crítica de Circunstância e não sei quantas versões da Comunidade e do Libertino. Durante algum tempo comprava o Diário Popular, acho que às quartas, só porque ocasionalmente raramente ele lá conseguia enganar o editor do suplemento literário com mais umas patranhas; mas tão bem escritas que arrepiava... Na última Feira do Livro comprei outra vez o Exercícios porque o original estava tão desfeito que se tornava difícil manusear, e o Diário Remendado. Hum, coisa dura... mas era mesmo ele, o Pacheco.

Não vou chorar o Pacheco. Viveu 82 anos, ena tantos! Acabei de rever o documentário da Dois e não pude deixar de me rir de novo. Ele era mesmo assim: escritor maldito? Sei lá! Teve uma vida complicada, mas se ele não se arrependeu nunca, porquê lamentá-lo? Se alguém pensar que apenas sofreu, leia por favor o Comunidade ou Os Namorados para perceber como ele foi feliz. À maneira (cínica) dele, pois claro.
O Pacheco era um tipo corrosivo. Mas era também um poeta e escrevia de forma genial. Não era apenas a forma como escrevia, do ponto de vista literário: era a forma como se expunha. A forma única de, pela escrita, se oferecer. Como provocava, como ofendia, como amava. O abjeccionismo não existiu senão em Luiz Pacheco. Foi ele que o «inventou»: afinal era ele mesmo! Mas o Pacheco (como o abjeccionismo) foi uma também uma criação do salazarismo e só (apenas mesmo!) por isso eu digo: obrigado ó jagodes fdp.

Acho que o Pacheco sabia que era um génio. E toda a gente sabia. Senão porque haveriam de o sustentar uma vida inteira a notas de vinte paus? Porque haveriam de continuar a falar com um tipo que na primeira oportunidade os trairia? Um tipo sacana, libertino, cínico, alcoólico, sei lá!

O Pacheco era um escritor cínico. Ou um cínico escritor, como queiram. Mas esta noite reli a Comunidade e achei-o a coisa mais ternurenta e forte que se pode escrever. Porque mais do que um texto, aquilo é um pedaço de vida. Alguém me consegue dizer onde acaba a cama e começa o livro? Alguém não consegue sentir mesmo os dedinhos de pé e os cheiros a suor e o calor daqueles cinco? Não!, nunca ninguém escreveu assim. O Pacheco era O meu escritor. Essa dívida, o Pacheco nunca me cobrou.

Estou a ficar velho: os meus heróis estão a finar-se todos! Este ano já se foram o Michael Brecker, o Max Roach, o Andrew Hill, o Frank Morgan, mais o Bergman e o Antonioni. Agora foi-se o Pacheco. Qualquer dia ainda matam o Homem Aranha!

Leonel Santos




PS: Aqui fica um pedaço do Comunidade.

Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão conchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem, compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva.
É um bicho poderoso, este, uma massa animal tentacular e voraz, adormecida agora, lançando em redor as suas pernas e braços, como um polvo, digo: um polvo excêntrico, sem cabeça central, sem ordenação certa (natural); um grande corpo disforme, respirando por várias bocas, repousando (abandonado) e dormindo, suspirando, gemendo. Choramingando, às vezes. Não está todo à vista, mas metido nas roupas, ou furando aos bocados fora delas. Parece (acho eu, parece) uma explosão que atingiu um grupo de gente parada e, agora, o que está ali são restos de corpos mutilados : uma pernita de criança, um braço nu sòzinho, um punho fechado (um adeus?... uma ameaça?...), um tronco mal coberto por uma camisa branca amarrotada. Ou seria, então, talvez, um desabamento súbito, uma avalanche de neve encardida, que nos cobriu a todos, ao acaso, aos bocados, e para ali ficámos, quietos e palpitando, à espera, quietos e confiantes, dum socorro improvável, cada vez mais (e as horas passam!) improvável, incerto, aguardando a luz da manhã, que chega sempre, que acaba sempre por chegar, para vivos e mortos, calados ou palrantes, ladinos ou soterrados, os que já desistiram da madrugada e os que, ainda, contra qualquer lógica, contra qualquer quantidade de esperança, confiam ainda e esperam.
Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoíces que só em português é possível ler, e viro-me para o lado esquerdo: é um hálito levemente soprado, pedindo beijos no escuro que me embala até adormecer. Voltamo-nos, remexemos, tomados pelo medo de estarmos vivos, pela alegria dos sonhos, quem sabe!, e encontramos, chocamos carne, carne que não é nossa, que é um exagero, um a-mais do nosso corpo mas aqui, tão perto e tão quente, é como se fosse nossa carne também: agarrada (palpitante, latejando) pelos nossos dedos; calada (dormindo, confiante) encostada ao nosso suor.