Hoje fui abalroado pela notícia de que um jovem de onze anos
tinha sido multado em 500€ por… tocar piano.
A notícia da televisão relatava que o jovem, um prodígio do
piano, treinava horas a fio em sua casa, incomodando uma vizinha, que se queixou
à polícia. A polícia foi a casa do jovem e. confirmando a situação, advertiu o
jovem de que teria de deixar de tocar o piano. Perante a recusa do jovem e da
mãe, a polícia levantou-lhe um auto pela transgressão, tendo a Câmara de Sintra
multado o jovem em quinhentos e picos euros.
O agente da polícia entrevistado explicava a situação com
visível dificuldade, aparentemente apercebido do ridículo da situação, mas
inflexível na determinação: lei era lei.
Será mesmo provável que o jovem toque piano muitas horas
todos os dias e aborreça os vizinhos. Pelo depoimento dos professores, ele
seria mesmo um «génio»; mas mesmo um génio tem de praticar o instrumento muitas
horas por dia.
No nosso quotidiano em sociedade somos perturbados pelo
trânsito automóvel, pelos aviões, pelo barulho dos rádios e das televisões, as
discussões dos vizinhos, o sino das igrejas, o ladrar dos cães dos quintais ou
mesmo as crianças a brincar (e claro que nada pode ser mais irritante que um
jovem a fazer escalas num piano cinco horas por dias). Mas também, enfim, pelo
simples facto de existirmos, somos perturbados pela chuva e pelo sol e pelo
vento e pelas doenças que temos ou que inventamos. (Proíba-se, pois, o mau
tempo.) E claro que importunamos.(Por vezes com o nosso silêncio!!)
Será óbvio para qualquer indivíduo razoável que a queixosa é
apenas uma pessoa perturbada ou, sei lá, uma velhota solitária com défice de
atenção, mas, como tal, necessita de ajuda, e ela não pode ser culpada da sua
perturbação. Mas já a polícia, mas já a cidade, mas já as leis: eles são
culpados, sim, da imbecilidade e da tristeza. Porque proibir a música é proibir
a vida. A música para aquele jovem (como o deveria ser para todos nós) é
sinónimo de respirar. Proíba-se talvez o respirar?
Num qualquer país normal,
o polícia, a cidade e as leis saberiam que o som de um piano não é ruído, que o
piano produz música (ademais o jovem está a aprender música clássica e até já
ganhou vários prémios internacionais), que o que o piano incomoda é o que a
vida dos outros sempre nos incomoda.
Ao patético da situação acresce que não estamos a falar de um
instrumento electrificado ou de um qualquer instrumento de índice decibélico
elevado. Acresce ao ridículo que um piano faz menos ruído (ruído: como o som do
piano foi referido) que o catarro do vizinho do terceiro direito da queixosa.
Num outro país qualquer que tivesse música; num país onde os
nossos governantes soubessem da importância da música na vida; num outro país
onde o senhor polícia, o senhor presidente da câmara e os senhores legisladores
soubessem que a música deveria fazer parte da vida dos cidadãos, isto não
poderia acontecer. Num país onde as pessoas aprendessem música de pequeninos,
onde a música fosse acarinhada, onde a música fosse promovida, onde a música
fizesse parte da cultura, a queixa da senhora seria ignorada.
Claro que vivemos num país triste, claro que estamos em
Portugal, onde a música oficial é o fado, onde a quase totalidade da população
não sabe música e não toca nenhum instrumento, e onde os pimbas nascem como
cogumelos. Claro que estamos em Portugal onde quem quer aprender música tem que
recorrer ao ensino particular; quer dizer, tem de pagar para aprender o que a
sociedade (e o Estado) tem o dever de promover, a par da língua, a par da
matemática e das ciências, e da história e da filosofia, onde a prática do
desporto é o futebol…
O Estado tem obrigação de acarinhar o ensino da música, e
tem a obrigação de patrocinar a música das escolas particulares, de patrocinar
as filarmónicas, os coros, as bandas populares, e as bandas rock e as escolas
clássicas e o Jazz. O Estado tem a obrigação de não relegar a música para os
concursos da televisão, o Estado (que somos nós) tem a obrigação de promover a música.
Não sei quantas vezes eu escrevi já que Portugal é um país
sem música. Se fosse necessária a comprovação, ela está aqui: um jovem de onze
anos foi multado pelo Estado, por tocar piano.
Está tudo dito: miséria de país onde a música é proibida!
Hoje fui abalroado!
If I'm
going to Hell, I'm going there playing the piano.
Jerry Lee Lewis
(desenho por TomAkaVeto)