quinta-feira, 26 de março de 2015

Herberto Helder, 1930-2015





O poema é um animal;
nenhum poema se destina ao leitor;
ou, como um quadro, assume o poder dos fetiches, objectos mágicos ou instrumentos de esconjurar os espíritos, ou a emoção, ou o inconsciente, guardando o homem de uma oculta dependência de tudo;
porque se vive dos lucros da superstição; 
e é forçoso existir a natureza, outorgada às nossas violações;
ou que as regras de organização do poema são as mesmas da natureza, mas os elementos com que o poema se organiza não estão na natureza; 
e o poeta não transcreve o mundo, mas é o rival do mundo.
...

Herberto Helder, Cobra, 1977, &etc

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Os limites da liberdade (carta a uma jovem jornalista)




Cara jovem jornalista,


Perdoe-me não ter fixado o seu nome.
O motivo por que lhe escrevo são as opiniões a propósito da liberdade de imprensa que expressou num noticiário a que assisti. Baseada num inquérito à comunidade islâmica portuguesa, onde a generalidade das opiniões condenava os atentados de Paris ao Charlie Hebdo mas reprovavam de igual forma as ofensas à sua religião e ao profeta Maomé, a menina concluía que era preciso repensar os limites da liberdade de imprensa e que não se devia ofender as religiões.

Tenho ouvido e lido várias opiniões no mesmo sentido nos últimos dias, mas na sua maioria, elas eram esperadas. 
Uma delas, por exemplo, de uma dessas verrugas que gostam de se pavonear nos programas da manhã da TVI, dizia que «os tipos estavam mesmo a pedi-las… se não se metessem com os muçulmanos, nada disto teria acontecido». Mas uma verruga é uma verruga, e desde que não se transforme em pele, o problema é normalmente apenas estético…
 
Outra opinião foi a do Papa Francisco. Quanto a ele, também não haverá muito a dizer. O Papa deve ser boa pessoa, mas a liberdade nunca foi muito cara à igreja católica; temos de compreender que ele tenha de defender o seu estatuto de chefe religioso e a mãe dele devia dar-lhe uns bons tabefes.

Mas devo dizer-lhe que a sua opinião me surpreendeu. Olhando para si, assim vestida e pintada, a minha primeira reacção foi desabrida: «Olha para aquela estúpida; se vivesse num país islâmico e aparecesse naqueles preparos na televisão iam todos de cana e a televisão era fechada!».
Sim, minha querida, é que se vivesse no Islão, a menina tinha de andar de burca, não podia estudar nem conduzir, e no dia que traísse o namorado ou o marido, era condenada a 500 vergastadas ou a ser delapidada em público.

Sim, minha querida, dito por uma mulher, que se deveria ofender com o Islão, defender os limites da crítica às religiões é um tanto estranho. Ou a menina não se ofende? Os direitos, das mulheres em especial, são todos os dias espezinhados pelas religiões, e de forma especialmente agressiva pelo Islão, e a menina não se ofende? Não se incomoda quando vê passar na rua uma mulher de burca?
Pois se é preciso defender o direito de essa mulher rezar a Maomé e de andar de burca, ninguém nos pode impedir de criticar, de satirizar, de ridicularizar, de rir. Dela, do profeta e do deus e dos homens que a mandam andar assim. 
Sim, é verdade que muitas mulheres, milhares, milhões, usam burca porque querem, e defendem e advogam o uso da burca, porque já nasceram com ela, porque incorporaram a inferioridade que a sociedade e a religião lhes inculcou ainda crianças, porque estão condicionadas pelo meio social e pelas suas tradições. E é por isso, e também por elas, que é legítimo, e necessário, lutar, pelo menos com a sátira, contra a burca. 

Por isso querida, reveja lá isso, se não quer um dia ter de andar de burca ou ser chicoteada na praça pública.

A menina será talvez católica e o que vou dizer de seguida irá chocá-la, mas deixe-me dizê-lo, ainda assim.

Porque não é um problema da religião islâmica. A origem do islamismo é a mesma do cristianismo e do judaísmo, embora se diga recorrentemente que «cá no ocidente as religiões são mais tolerantes»

Não pretendo dissertar sobre a natureza das religiões, mas a sociologia descobriu que, entre outras coisas, as religiões são também sistemas de identificação social e cultural e de coesão social; globalizantes no sentido em que tendem a explicar e justificar tudo a partir de deus. Nesses processos de identificação, as religiões impõem códigos, leis, moral e normas de conduta social e individual, procurando influenciar os governos, as sociedades, as leis e, acrescento eu, retirando daí benefícios «em nome de deus». Quem não pertencer à religião dominante é marginalizado. As religiões cristãs, e a católica incluída, não fogem à regra. 
Não vale a pena falar do papel da inquisição e das cruzadas; mas se retrocederemos apenas uns anitos, não muitos, em Portugal o divórcio era proibido por imposição da igreja, as mulheres não podiam praticar um sem número de actividades, mesmo profissionais, sem o acordo do marido ou do pai, e a moral religiosa mandava prender os jovens que se beijassem em público. A menina não assistiu a isso, claro, porque é muito jovem, mas os resquícios desse período negro da história de Portugal subsistem.
E se os jovens já não são presos por se amarem, foi porque houve uma revolução em Portugal, e porque homens e mulheres lutaram por isso. Mas a influência da igreja persiste: no nosso estado laico continua a existir um acordo com a santa sé – uma Concordata; a igreja, as igrejas, têm privilégios, pagam menos impostos que eu, interferem nas escolas, insinuam-se nos programas de ensino (e continua a haver aulas de religião e moral nas escolas), têm escolas, têm espaços na televisão, têm rádios, têm jornais, insinuam-se, intrometem-se na sociedade, impõem regras e costumes. Não é um fenómeno português: nos Estados Unidos, por exemplo, existem inúmeras escolas onde se ensina o criacionismo ao invés do evolucionismo...
      
A religião cristã continua a dizer-nos que nascemos com um pecado original: somos pecadores, ainda antes de nascermos! E a menina não acha ridículo? Os livros sagrados da «nossa» religião (a religião do «ocidente» nas suas diversas nuances) dizem-nos que as mulheres são apêndices dos homens – nasceram de uma costela do homem –, e a menina não se ofende? A menina não acha ridículo? E o que se faz quando nos deparamos com uma coisa ridícula? Não nos rimos? Não satirizamos?
A própria impossibilidade do sacerdócio às mulheres, não lhe diz nada sobre o lugar que as mulheres ocupam na sociedade para a igreja católica? E a menina não se ofende?

A religião cristã (e nisso, uma vez mais, acompanha o islamismo e o judaísmo) opõe-se à interrupção da gravidez (o aborto), em todas as situações; mesmo quando a mãe ou a criança estão em perigo de vida, ou mesmo quando os testes pré-natal já concluíram que a criança irá nascer um vegetal. Ou seja, condenam à infelicidade, por toda a vida, as crianças e os pais.  Mas não impõem isso para eles, impõem-no para a toda a sociedade!

Por preconceito religioso e social, os nossos deputados cristãos opõem-se à adopção das crianças por casais homossexuais, mesmo contra os direitos das crianças, e o que devemos fazer? Calar, não ofender, ou denunciar?

As religiões opõem-se a qualquer tipo de contracepção, mesmo quando as famílias vivem na miséria.
As religiões interferem na nossa sexualidade. O bom Papa Francisco que aconselha os seus fiéis a não procriarem como coelhos, proíbe o uso de todos os contraceptivos artificiais. Ou seja, advoga a abstinência.
As religiões gostam da culpa (como se o sexo fosse pecado), defendem a infelicidade, em nome (da crueldade) do deus. Não terei o direito de questionar? De criticar a falta de humanidade das religiões? De ridicularizar? 

Por isso, minha querida, se não quer viver em pecado, ou se vai confessar de cada vez que der uma queca e o seu marido (com o namorado nem pensar) usar camisinha, ou se liberta da culpa.

 Dizem – os filósofos da superioridade do ocidente - que a nossa sociedade e a nossa religião são mais tolerantes e mais avançadas. Eu até posso concordar. Mas note que esse «progresso» foi conquistado, casa a casa, rua a rua, pelos pensadores, pelos cientistas (e só em 2000 a igreja católica pediu desculpa a Galileu pela perseguição que lhe moveu!!), pelos filósofos, pelos milhares de homens e mulheres que lutaram pela (sua também) liberdade de pensar, pela liberdade de expressão, pela liberdade religiosa, pois claro, pela liberdade. Se a menina vai para a televisão pintada e, se lhe apetecer, com um decote um pouco mais generoso, é porque homens e mulheres defenderam o seu direito a andar como lhe apetecer. 
A nossa sociedade evoluiu sim, menina, apesar da igreja e contra a igreja. E foi para que a menina possa aparecer na televisão a opinar, que milhares, milhões, de mulheres e homens lutaram (e quantos morreram) contra os ditames das religiões.

As religiões, menina, não são clubes de futebol (que também são sistemas de identificação social); elas são por natureza intolerantes, prepotentes e opressoras. Se renunciarmos ao nosso direito de crítica, estamos a capitular; é a nossa liberdade, é, sim!, a democracia e a civilização que estão em perigo.
É verdade que é preciso defender a todo o custo a liberdade de religião. Eu penso que todas as religiões são retrógradas; mas porque exijo para mim o direito de me exprimir em liberdade, eu tenho de exigir para as religiões o direito de existir e aos crentes o direito de professarem a sua fé da forma que entenderem. Em coexistência pacífica com os outros credos ou os não credos.

Como no ocidente, milhões de mulheres e homens nos países islâmicos lutam contra as burcas (de toda a espécie) e pela liberdade. Eu penso que é preciso apoiar esses homens e essas mulheres, e uma forma activa é a sátira.
A combate às burcas (de toda a espécie) não pode significar qualquer tipo de proibição: em nome da liberdade, o nosso mundo civilizado não pode proibir ninguém de vestir o que quiser, de pensar o que quiser, de professar a religião que quiser, de comer o que quiser ou praticar os cultos que quiser (e isto não tem nada a ver com terrorismo, que não é assunto desta minha e-pistola). Mas é porque o combate às burcas deve ser político e social, que não podemos capitular no nosso direito à liberdade de expressão e crítica!

Eu penso que a menina não pensou bem na coisa. Porque os defensores da «liberdade com limites» estão a defender a censura e eu não acredito que a menina seja a favor da censura. Porque não há limites para a «ofensa»: os muçulmanos ofendem-se pela simples representação de Maomé, os cristãos ofendem-se com o preservativo no nariz do Papa (que se opõe ao preservativo), os judeus ofendem-se com as mulheres nas fotografias, e muitos políticos ofendem-se com tudo.
Em nome de deus e das ideologias e do seu bom nome, esses políticos e profetas (com frequência de mãos dadas) não perdem uma oportunidade para censurar, para impor limites à democracia, para restringir a nossa liberdade e cercear a liberdade de imprensa. Foi assim com Hitler e Estaline ou o nosso pardacento Salazar, mas foi assim também com Cavaco, Sarkozy e Mariano Rajoy. 
As igrejas e os políticos pretendem controlar os media e o argumento dos limites da liberdade vem mesmo a calhar: a verdade é que eles argumentam com a ofensa porque lhes falta argumentos ou porque mentem (ou porque são parvos, enfim), e a democracia e a liberdade são uma chatice: as pessoas que são informadas discutem e questionam as regras que lhes querem impor.
Os desenhadores do Charlie Hebdo foram assassinados por exercer o seu direito à liberdade e por a defenderem. A liberdade deles e a nossa. A liberdade de expressão que levavam aos limites, de criticar e ridicularizar, de expor o ridículo e as sacanices. A ofensa está apenas na cabeça dos assassinos, dos censores, dos que nos ofendem todos os dias.

Houve uma altura, há uns séculos, em que alguns pensadores - os que ajudaram a construir a nossa civilização - defendiam que era necessário que os homens com princípios éticos e morais, os homens bons, deviam erguer-se e exigir a liberdade. Eu não tenho mais argumentos que os de Voltaire. Eu recordo para esses «defensores da liberdade de imprensa com limites» esquecidos: «É por discordar do que tu dizes que defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo».
Ou de outra forma: é a democracia, estúpido!

Enfim, o direito de rir.
O homem é o único animal que ri. Nós rimo-nos porque estamos contentes, mas até o mais inocente escoteiro se ri quando alguém tropeça à sua frente. Rimo-nos do Groucho Marx e do Chaplin porque fazem coisas ridículas, andam de forma ridícula, vestem roupas ridículas. Mas quantas pessoas andam e vestem como eles? E não nos rimos também?  Não temos esse direito? É assim, é a nossa natureza. Nós rimo-nos da felicidade e da infelicidade. Nós rimo-nos da burrice dos outros, das roupas dos outros, das religiões dos outros, da cultura dos outros. E rimo-nos até de nós. Nós rimos porque somos inteligentes!

O riso é também uma forma de crítica. É um exercício de liberdade e é uma forma de crítica necessária! Satirizar, ridicularizar, expor aos outros o ridículo das religiões, das opiniões, das políticas, das pessoas, dos partidos, é contribuir para que os indivíduos pensem; é a postura do Charlie Hebdo. Faziam-no, fazem-no, de forma com frequência malcriada, ofensiva, mas muito menos ofensiva do que as religiões que querem impor os seus preceitos, as suas regras e a sua moral à sociedade. 

As religiões muçulmana e judaica proíbem comer carne de porco, no hinduísmo as vacas são sagradas, no Islão proíbe-se que se desenhe Maomé e as mulheres andam de burca, a religião cristã manda ter relações apenas para procriar e quem for guloso ou preguiçoso vai para o inferno. E impõem essas regras e morais para toda a sociedade. Não gozem comigo! 

Rir é saudável, querida jovem jornalista. E nós portugueses estamos precisados de rir. Depois de quatro anos com um governo que nos parasita e que nos mente todos os dias, resta-nos o direito de rir. Não nos tirem esse direito. Ridicularizar aldrabões, satirizar preconceituosos, gozar com os filhos-da-puta, rir das verrugas, está consagrado na Declaração dos Direitos do Homem. Ou se não está, devia estar.

Rir é saudável, não há nada que valha tanto como uma boa gargalhada.

Ria menina, que lhe faz bem à saúde.
 

Talvez ainda haja esperança para a Europa


Talvez ainda haja esperança para a Europa

sábado, 17 de janeiro de 2015

Julio Cortazar, A volta ao dia e afim




 


É sabido, Julio Cortázar não é um autor fácil. Não é um autor fácil de ler e mais difícil ainda de traduzir. Alguns dos seus livros são particularmente «difíceis» e constituem verdadeiros desafios; A volta ao dia em 80 mundos é um destes livros. As razões são várias, a começar pela diversidade de formas e objectos do autor, que ora utiliza um estilo que diríamos jornalístico, até à poesia; ora utiliza neologismos, alguns deles jocosos ou deliberadamente errados, ora escreve de forma algo encriptada, passando de um capítulo de fácil leitura para outros de escrita densa; ora conta uma história, ora ensaia sobre um ou outro autor ou artista.

É pois um livro difícil. Já o referi em anterior post, mas isso não desculpa a tradução, a revisão e a edição.

O que é estranho na tradução, e revisão, é que é desigual. Alguns dos textos são exemplares, enquanto outros deixam muito a desejar; parecendo ter sido feitas por diferentes indivíduos, ou pelo menos com diferente atenção. Já referi a pontuação desastrada que se arrasta pelo livro todo, mas as gralhas regressam quando menos se espera: «Vale a pena ser tradutor free-lance porque pouco a pouco vão-se conhecendo os ministérios da Europa…» (p.105), «não e xiste aí qualquer ficção.» (p. 131) ou, pior, …«é um livro para ser lido na cama afim de não se adormecer noutras posições…» (p.118).

Enfim, já terminei o livro. Como disse, a tradução e a revisão são desastradas, mas nem sempre. Uma boa parte do livro lê-se bem, mesmo se, graças à pontuação, eu o tenha feito aos solavancos. Mas pronto, quem como eu não seja capaz de o ler na língua original, sempre digo que os textos dedicados a Clifford Brown, Louis Armstrong e Thelonious Monk são antológicos.


A volta ao dia em 80 mundos, Júlio Cortazar, Cavalo de Ferro, 2010, 3.ª edição

( tradução)