quinta-feira, 22 de março de 2012

Luiz Pacheco

LUIZ PACHECO
1925 - 2008


O Pacheco finou-se. Que vos hei-de dizer? Ora talvez que ele foi uma das duas pessoas que me ensinou a escrever. A outra foi a Arlete, que era a minha professora do 5.º ano, que nunca conseguiu ensinar-me gramática mas que me disse que era preciso olhar para as palavras e a forma como elas estavam dispostas na frase. Se não aprendi, a culpa não é deles, que foram os melhores professores que se pode ter.

Recordo-me como um dia entrei naquela livraria da Rua do Ouro que já não existe (como é que se chamava?) para comprar o Exercícios de Estilo, e levei-o para o Paladium. Nesse dia, depois de ler o «Teodolito» e a «Comunidade», elegi o Luiz Pacheco como o maior escritor português do século XX, o que é ainda hoje bastante a minha convicção. Lamento apenas que tenha «perdido» tanto tempo a viver e tenha escrito tão pouco. Quantas vezes li e reli por puro gozo, mas também para tentar aprender como se podia usar a língua toda num texto?

Cruzei-me com ele meia dúzia de vezes, o que não era difícil para quem vivia em Lisboa. Recordo como impingia vitupérios por cinco escudos à porta da Trindade ou rosnava dedicatórias na Feira do Livro. A última vez que o vi – já há uns anos - estava com um ar desgraçado, mais pitosga que nunca, de sandálias e meias pretas. Ia no eléctrico para a Baixa e as velhas afastavam-se. Sentei-me ao lado dele que nem me viu. E eu, que lhe havia de dizer?


Depois do Exercícios de Estilo, comprei o Pacheco X Cesariny e o Crítica de Circunstância e não sei quantas versões da Comunidade e do Libertino. Durante algum tempo comprava o Diário Popular, acho que às quartas, só porque ocasionalmente raramente ele lá conseguia enganar o editor do suplemento literário com mais umas patranhas; mas tão bem escritas que arrepiava... Na última Feira do Livro comprei outra vez o Exercícios porque o original estava tão desfeito que se tornava difícil manusear, e o Diário Remendado. Hum, coisa dura... mas era mesmo ele, o Pacheco.

Não vou chorar o Pacheco. Viveu 82 anos, ena tantos! Acabei de rever o documentário da Dois e não pude deixar de me rir de novo. Ele era mesmo assim: escritor maldito? Sei lá! Teve uma vida complicada, mas se ele não se arrependeu nunca, porquê lamentá-lo? Se alguém pensar que apenas sofreu, leia por favor o Comunidade ou Os Namorados para perceber como ele foi feliz. À maneira (cínica) dele, pois claro.
O Pacheco era um tipo corrosivo. Mas era também um poeta e escrevia de forma genial. Não era apenas a forma como escrevia, do ponto de vista literário: era a forma como se expunha. A forma única de, pela escrita, se oferecer. Como provocava, como ofendia, como amava. O abjeccionismo não existiu senão em Luiz Pacheco. Foi ele que o «inventou»: afinal era ele mesmo! Mas o Pacheco (como o abjeccionismo) foi uma também uma criação do salazarismo e só (apenas mesmo!) por isso eu digo: obrigado ó jagodes fdp.

Acho que o Pacheco sabia que era um génio. E toda a gente sabia. Senão porque haveriam de o sustentar uma vida inteira a notas de vinte paus? Porque haveriam de continuar a falar com um tipo que na primeira oportunidade os trairia? Um tipo sacana, libertino, cínico, alcoólico, sei lá!

O Pacheco era um escritor cínico. Ou um cínico escritor, como queiram. Mas esta noite reli a Comunidade e achei-o a coisa mais ternurenta e forte que se pode escrever. Porque mais do que um texto, aquilo é um pedaço de vida. Alguém me consegue dizer onde acaba a cama e começa o livro? Alguém não consegue sentir mesmo os dedinhos de pé e os cheiros a suor e o calor daqueles cinco? Não!, nunca ninguém escreveu assim. O Pacheco era O meu escritor. Essa dívida, o Pacheco nunca me cobrou.

Estou a ficar velho: os meus heróis estão a finar-se todos! Este ano já se foram o Michael Brecker, o Max Roach, o Andrew Hill, o Frank Morgan, mais o Bergman e o Antonioni. Agora foi-se o Pacheco. Qualquer dia ainda matam o Homem Aranha!

Leonel Santos




PS: Aqui fica um pedaço do Comunidade.

Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão conchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem, compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva.
É um bicho poderoso, este, uma massa animal tentacular e voraz, adormecida agora, lançando em redor as suas pernas e braços, como um polvo, digo: um polvo excêntrico, sem cabeça central, sem ordenação certa (natural); um grande corpo disforme, respirando por várias bocas, repousando (abandonado) e dormindo, suspirando, gemendo. Choramingando, às vezes. Não está todo à vista, mas metido nas roupas, ou furando aos bocados fora delas. Parece (acho eu, parece) uma explosão que atingiu um grupo de gente parada e, agora, o que está ali são restos de corpos mutilados : uma pernita de criança, um braço nu sòzinho, um punho fechado (um adeus?... uma ameaça?...), um tronco mal coberto por uma camisa branca amarrotada. Ou seria, então, talvez, um desabamento súbito, uma avalanche de neve encardida, que nos cobriu a todos, ao acaso, aos bocados, e para ali ficámos, quietos e palpitando, à espera, quietos e confiantes, dum socorro improvável, cada vez mais (e as horas passam!) improvável, incerto, aguardando a luz da manhã, que chega sempre, que acaba sempre por chegar, para vivos e mortos, calados ou palrantes, ladinos ou soterrados, os que já desistiram da madrugada e os que, ainda, contra qualquer lógica, contra qualquer quantidade de esperança, confiam ainda e esperam.
Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoíces que só em português é possível ler, e viro-me para o lado esquerdo: é um hálito levemente soprado, pedindo beijos no escuro que me embala até adormecer. Voltamo-nos, remexemos, tomados pelo medo de estarmos vivos, pela alegria dos sonhos, quem sabe!, e encontramos, chocamos carne, carne que não é nossa, que é um exagero, um a-mais do nosso corpo mas aqui, tão perto e tão quente, é como se fosse nossa carne também: agarrada (palpitante, latejando) pelos nossos dedos; calada (dormindo, confiante) encostada ao nosso suor.